6.5.08

Maio à esquerda?

Resisto dificilmente a uma «pequena provocação», sobretudo se é feita num blogue que aprecio. Os outros interpelados não se acusam e vejo na Caixa de Comentários que o autor do post está à espera de ver o que eu escrevo para voltar a pronunciar-se. Responsabilidade redobrada, portanto, para quem já tinha decidido não contribuir mais para a verdadeira e desproporcionada avalanche de textos opinativos sobre Maio 68.

O que está em causa é responder à pergunta «O que é que o Maio de 68 fez de importante e duradouro para a esquerda?»

Muito ou muito pouco, nada para alguns – conforme as perspectivas, as esquerdas e também as vivências colectivas, pessoais e, porque não, afectivas.

Não vou repetir que não se pode isolar Paris 68 de tudo o resto que aconteceu, antes e depois, um pouco por todo o mundo. Já está dito. Nem discutir se houve revolução ou só revolta, se os mais importantes foram os estudantes ou os operários. Sinceramente, também não sei se os efeitos chegaram aos aborígenes da Austrália ou aos habitantes da ilha da Páscoa e, por hoje, deixo a França para os franceses.

Aquilo de que estou convencida é que, em Portugal, para uma certa esquerda (que, para simplificar, caracterizaria como não estando à época enquadrada em partidos ou movimentos marxistas-leninistas, PC e outros), 1968 teve uma influência decisiva que veio para ficar – e que ficou, pelo menos até ao fim do PREC. Confesso que só nos últimos dias consolidei a formulação desta minha opinião, razão pela qual nem a quero defender muito categoricamente. Mas passo a explicar.

A claustrofobia em que se vivia em Portugal, sem as liberdades mínimas e com sete anos de guerra colonial, era terreno propício para que a contestação de todos os poderes se instalasse, a nível da oposição ao regime – e à Igreja – e no plano dos costumes. Luta pela liberdade e luta por todas as liberdades passaram a ser uma e mesma realidade. Claro que tudo acontecia apenas a nível de elites em (poucos) centros urbanos – mas eram elites francófonas e francófilas, para quem Paris já era, e passou a ser ainda mais, o que de mais parecido havia com o paraíso na terra. Em palavras mais simples, estou a dizer, sim, que foi a faceta contestatária e libertária do Maio de 68 que influenciou esta esquerda não muito «ideológica», que marcou a sua maneira de agir através de todo o período marcelista e que a fez atravessar o 25 de Abril e viver o PREC com uma certa insensatez utópica. Felizmente, digo eu, sem qualquer nostalgia ou saudosismo (*).

Isto foi importante e foi duradoiro, passou em parte para as gerações que se seguiram e continua a reflectir-se, para muitos, num certo modo de estar na vida e na política. Se responde, minimamente, à pergunta que foi posta, não sei... Mas que venham os comentários.

Tivesse eu trinta e tal anos, como julgo ser o caso do Zèd e de alguns bloggers do Peão que até conheço pessoalmente, e esta prosa seria radicalmente diferente. Garantidamente.

E, a partir de hoje, de Maio 68, nesta casa, só bonecos e sons. Espero que, também, garantidamente...

---------------------------------------------------------------------------------------------

(*) A propósito da vivência do Maio de 68 nas diferentes esquerdas, leia-se o que Rui Bebiano escreveu em Espartanos e hedonistas.

14 comments:

Zèd disse...

Sim, trinta e tal anos...

Excelente texto.
É curioso que no plano político o Maio de 68 acabou por ter maiores consequências em Portugal do que em França :-), felizmente para Portugal.
Mas mesmo em França teve consequências importantes (e positivas). Ainda volto ao assunto, mesmo sem perceber muito bem o que foi afinal o Maio de 68.

Joana Lopes disse...

Obrigada, Zèd.

Claro que volta ao assunto, era melhor que não o fizesse depois da traballheira que me deu! Fico à espera.

Não creio que se possa dizer que Maio 68 teve mais consequências em Portugal do que em França. O que acontece é que Portugal estava numa situação muito específica de falta de liberdade e, por isso, ALGUNS portugueses estavam especialmente sensíveis a movimentos que a exaltassem.

Um abraço

Anónimo disse...

Mas como é possível que continue sem se perceber que as «consequências» do Maio foram nulas no plano político imediato mas extremamente importantes no domínio das vivências (de quem o viveu) e sobretudo no plano simbólico? E é justamente por isso que continuamos a falar delas com um pouco de paixão (apesar do excesso de conversa próprio destes aniversários).

Joana Lopes disse...

Rui,
Se calhar devia deixá-lo a discutir com o Zèd, mas aqui vai.

Continua de facto a haver muitos que pensam que tudo (a «derrota» de Maio 68) se reduz ao facto de a esquerda não ter tomado o poder e de ter mesmo «prejudicado» as esquerdas que se seguiram. (As moengas que tenho tido, nos últimos dias, em algumas caixas de comentários!...)

Primeiro, julgo que não será exactamente o caso do Zèd.

Segundo, até acho relativamente normal que quem não viveu os acontecimentos - e se debruça sobre eles talvez agora pela primeira vez - pense em termos de consequências políticas imediatas. Nós andamos nisto há muito tempo...

Shyznogud disse...

Ao contrário, Joana, faria muito mais sentido que fossem vocês, mais velhos e com expectativas imediatas na altura, que tivessem maior dificuldade em ultrapassar um (hipotético) desânimo pela "derrota política" da altura. Não identificar as consequências (mais que simbólicas, Rui) de Maio de 68 deixa-me perplexa.

Joana Lopes disse...

O que queria dizer, Shyz, é que eu já tive muito tempo para «balanços» e para os interiorizar.

Quanto à importância dada às consequências simbólicas, neste caso específico, constato que está na moda confundi-las com revivalismo ou nostalgia.

F. Penim Redondo disse...

Eu, talvez pela minha história de vida, sou muito céptico em relação a espontaneismos inconsequentes. Não "faz o meu género".

Basta olhar para uma cronologia dos anos 60 (como aquela que eu publiquei em DOTeCOMe) para perceber que, antes dele, já tínhamos tido a pílula, os cabeludos Beatles, as latas de Andy Warhol, o mito de Che Guevara, a firmeza de Martin Luther King e de Mandela, o génio de Felini e Antonioni, a mini-saia, o "flower power", S. Francisco, "The times they are a-changin", etc, etc, etc.

A riquíssima herança libertária da década de 60 foi malbaratada ao ser canalizada, de forma oportunista para o nível directamente político, quando os anarquistas e maoistas de facto, não sabiam o que fazer com ela.

Como não tinham qualquer resultante para as forças que desencadearam, forças que se tinham vindo a acumular em resultado da acção de intelectuais e políticos em todo o mundo ao longo da década, forçaram um irresponsável braço de ferro que só podiam perder.

Deixaram claro que não tinham uma alternativa social viável e provocaram, por um lado a desilusão da juventude de esquerda e pelo outro a deslocação das pessoas moderadas e assustadas para os braços da direita.

Chocam-me os exageros relativamente ao Maio de 68 pois me soam a menosprezo de uma década fantástica que eu vivi, talvez ainda mais por ter sido obrigado a viver na Guiné enquanto Maio de 68 estava a acontecer.

O que eu sei é que quando parti para a Guiné, antes do Maio de 68, já levava comigo todos os valores e rupturas que agora lhe são indevidamente atribuídos.

Porque é que isso acontece ? Sem querer ser deselegante diria que talvez isso se deva a que um número significativo de intelectuais com acesso aos meios de comunicação viveram pessoalmente essas situações enquanto estudavam em Paris.

Outra razão possível: os modelos ortodoxos de organização da luta política à esquerda estão em crise desde a queda do "socialismo real".
Não surgiram depois disso fórmulas suficientemente mobilizadoras para o retomar do crescimento da esquerda.
Talvez alguns espíritos estejam a tentar ressuscitar os "ares de 68" à falta de melhor (isso é algo que me horroriza).

Continuarei a bater-me por uma esquerda que, embora orgulhosa do seu passado, seja essencialmente a melhor resposta para o futuro.

Anónimo disse...

Para mim o simbólico existe, é real, está presente, embrulha-nos. É nesse sentido que falo dele, Shyz, não como alegoria. Mas é muito provável que nem sempre seja claro. Sobretudo quando falo para pessoas que já conhecem mais ou menos o que penso destas coisas, que são uma minoria. Esclarecida, of course!... [ou bien sûr!...] :-)

Lá no meu quintal (A Terceira Noite) ainda tentarei ir falando um pouco mais disto. E sobretudo da «questão do poder», em volta da qual giram os maiores equívocos sobre o 5/68 e sobra a sua influência.

Joana Lopes disse...

Fernando,
Por este andar, continuarás a ser, por muitos anos, o amigo com quem melhor me desentendo. Discordo de quase tudo o que dizes, como sabes.

Como já discutimos mais ou menos isto na tua C. de Comentários, para já «passo». Pode ser que volte mais tarde. Mas, já agora, deixo aqui a primeira coisa que escrevi no Dotecome como reacção a estas tuas posições:
«Assim se vê a força do PC»

Alguém te responderá entretanto, talvez...

Joana Lopes disse...

Rui,
Tinha encomendado há uns tempos e recebi hoje o seu «O Poder da Imaginação». Mais material para leitura...

Joana Lopes disse...

Fernando,

Afinal regresso, depois de reler o teu comentário, com uma pergunta: tu, que me conheces há tantos anos, revês-me ou não no que escrevi no «post»? Identificas ou não o meu comportamento com o que tentei explicar? Achas que é por causa da queda do «socialismo real» que eu estou a «ressuscitar os ares de 68»?

Ponho a questão neste termos «personalizados» porque me parece que estás de tal modo rígido nas tuas posições que não tentas perceber as dos outros - neste caso, as minhas.

Digo isto numa sincera e positiva tentativa de compreensão mútua. Vamos lá ver se resulta.

Joana Lopes disse...

A conversa com o Fernando «saiu» da C. de Comentários e continuou por «mail».

João do Lodeiro disse...

Gostei muito do texto. Parabéns.

De facto a humanidade deve muito à França. Sem ela, politica e socialmente falando, estaríamos muitíssimo mais atrasados. Hoje, quem preze os valores da liberdade, da solidariedade e da justiça social, respira um ar nauseabundo, carregado da maléfica globalização dos interesses do capitalismo selvagem. Que tudo compra. Que tudo corrompe. Valores tão caros à social-democracia, ou socialismo democrático, que hoje vemos serem assassinados à custa daqueles interesses.

Estou por isso esperançado que de lá surja, novamente, uma Força, um grito de revolta; um novo Gavroche, que transporte novamente a Liberdade Humana, imortalizada por Delacroix, a outro mundo, onde não exista este insuportável mal-estar social dos nossos dias. Chegámos ao fim de um ciclo?

Mais tarde, ou mais cedo, algo parecido com o Maio de 68, terá que acontecer. Quando há tempos ocorreram aqueles tumultos nas cidades francesas, ainda pensei que seria o início da revolução que precisamos. Diferente da de Maio de 68, sem dúvida, que teve, efectivamente, uma carga simbólica que não se pode negar. Ele marcou o fim da “velha sociedade” dos costumes. E, neste sentido, não foi mais do que a resposta da sociedade francesa a todos os movimentos de libertação e de rotura sociais que se iniciaram nos EU. O movimento hippy ou mesmo a luta pelos direitos dos negros americanos. A França, governada em 68 por um governo de direita conservador, de de Gaule, habituada que estava a dar exemplos à humanidade, sentiu-se e reagiu. É assim que eu vejo o Maio de 68. Politicamente, pelo poder, a montanha pariu um rato. É certo. Mas a sociedade francesa e as restantes, nunca mais foram as mesmas.

Como disse a Joana, em Portugal foi a renovação da esperança na mudança, após dezenas de anos de um Estado que de Novo nada tinha. Bem pelo contrário. Essa esperança renovada vibrou, forte, na voz de Adriano Correia de Oliveira, que tantas vezes animou célebres tertúlias, vigiadas pela DGS, de homens e mulheres sem medo.

Só mais uma dica. Relativamente ao nosso atraso atávico, leiam o último “post” do Natureza Naturada, onde coloquei mais uma prova da responsabilidade do Estado Novo. Para que não branqueiem a História!

Agora, venha de lá essa Força, urgentemente, que dela bem precisamos!

Joana Lopes disse...

Obrigada, JP.

Haverá sempre marcos que deixam marcas. Teremos mais: se não em França, num outro sítio.