9.6.09

O 10 de Junho


Vem de longe a comemoração do dia em que Camões foi transladado para o Mosteiro dos Jerónimos, em 1880. Feriado nacional desde os anos vinte do século passado, a data ganhou um novo significado em 1944, quando Salazar a rebaptizou como «Festa de Camões e da Raça». Fê-lo por ocasião da inauguração do Estádio Nacional, que ocorreu com toda a pompa, em cerimónias a que terão assistido mais de 60.000 pessoas e que foram filmadas por António Lopes Ribeiro (vídeos aqui e aqui). A linguagem é inequívoca - «Às cinco horas, chegou o chefe: Salazar. Salazar, campeão da pátria, era o atleta número um, naquela festa de campeões.» - e ouvem-se comentários como este: «Já não vivemos, graças a Deus, naquela época em que parecia mal às mulheres portuguesas cuidarem da higiene e da saúde do corpo, não se preparando convenientemente para a sua altíssima função.»

Mais graves, e bem mais trágicos, passaram a ser os 10 de Junho a partir de 1963. Transformados em homenagem às Forças Armadas envolvidas na guerra colonial, eram a data escolhida para distribuição de condecorações, muitas vezes na pessoa de familiares de soldados mortos em combate (fotos reais no topo deste post).

Desde 1978 que não é Dia da Raça e, para além de Portugal e de Camões, passou a festejar-se também as Comunidades Portuguesas. Mas continua a haver condecorações – outras, evidentemente, por motivos totalmente diferentes e por razões certamente muito louváveis. Talvez fosse no entanto possível ter escolhido outro dia para as distribuir, já que, no meu entender, é quase inevitável associar qualquer distribuição de medalhas neste dia às trágicas imagens do Terreiro do Paço em tempo de guerra nas colónias.


(Publicado também em Caminhos da Memória)

3 comments:

Jorge Conceição disse...

Será que o olhar infantil é de censura, acusatório, ou é apenas imaginação minha? Mas que me gela, lá isso gela! Como se eu fosse um cúnplice...

Anónimo disse...

Eu que não assisti, nem vivi, essas condecorações no Terreiro do Paço , associo no entanto a historia da raça , e se não associasse bastava-me que houvesse a hipótese de uma gafe por parte do PR para que se mudasse o dia. Há coisas que não vale a pena e as ossadas do Camões não valem.

José de Sousa disse...

Os vídeos da inauguração do Estádio Nacional não são uma lição de História, recebida a uma distância segura que não lhe permita tocar-nos. São a História que nos cai em cima, que nos envolve, que nos arrasta para aquela inauguração, para a nojenta exaltação daquele regime. Ainda nas suas posturas fascistas. Que se veja bem cada imagem, cada palavra, o tom da locução. Que se veja e pense-se no que há ainda que limpar, que expurgar, que sepultar definitivamente.
Não nos inocentemos, nós, portugueses, fomos aquilo, somos um pouco aquilo e poderemos vir a sê-lo muito mais.
Obrigado, Joana, por os teres posto ao nosso alcance. Uma nota pessoal: eu cheguei a ensaiar, por várias vezes, no estádio nacional, um “número” para a sua inauguração, mas a 10 de Junho, no meu ano lectivo, já não havia aulas, logo, não havia faltas. E o meu pai não permitiu que eu me honrasse com a presença em tão histórica acontecimento.
Ao ver o desfile militar do dia de hoje, sobrepus-lhe os desfiles que se vêem nos vídeos. Não me senti confortável. Serão os desfiles, como os rebanhos, sempre muito parecidos?
Sou sensível, como o Jorge Conceição, à imagem daquela criança. Para mim, com a idade que tenho, aquela criança e o seu olhar são uma acusação. Seguramente que não fiz o que devia, nem como devia. Não estive numa repugnante exaltação daquele regime e daquele ditador, e fiz bem; mas, por outro lado, andei a fazer mal e pouco, enquanto se ia chegando àquela extrema abjecção das guerras coloniais. E de tudo o mais.
Pode ser pieguice minha, mas eu prefiro pensar num sentido de responsabilidade. Que todos deveriam ter na sua qualidade de cidadãos.
A criança é o negativo, bastantes anos volvidos, daquelas exaltadas imagens de glorificação.

Nota: vale a pena apreciar o talento de António Lopes Ribeiro.