18.6.11

Separados à nascença?

No Público de hoje, São José Almeida faz-se eco da perplexidade de quem tenta entender, de fora, o que se passa no PS, nesta fase que precede a escolha do sucessor de Sócrates. Relativamente indiferente quanto ao resultado que vier a sair da eleição que terá lugar no fim do próximo mês, eu própria assisto ao desfilar de pré-declarações de voto, sem conseguir descortinar as razões que levam uns a preferir Seguro e outros a dar a vida por Assis. Mais: quando quase aposto que fulano ou sicrano vai escolher um deles, é mais do que certo que leio pouco depois que é fã incondicional do outro. Parece, afinal, que o problema não é unicamente meu…

Os gémeos

Fulano apoia Y e beltrano apoia X. O país tem sido inundado por notícias sobre a divisão das personalidades do PS, dos dirigentes do PS, das figuras do aparelho do PS pelas duas candidaturas a secretário-geral que foram conhecidas pouco depois da demissão de José Sócrates. O que tem sido mostrado da campanha para líder dá mesmo uma visão pobre e redutora do que é a autonomia de escolha dos militantes do PS. A ideia que passa é a de que há sindicatos de voto e que os militantes votarão em quem os seus caciques ou fi guras de referência indicarem. Parece que tudo se resume a uma questão de simpatia pessoal, obediência de grupo e hipóteses de carreira interna. Ninguém discute política, disputam-se redes de poder. Já agora: e a esquerda do PS? Ainda existe? Vai dividir-se também entre os dois candidatos? Será que o aparelhismo e a fulanização da política domina a esquerda do PS de tal forma que nem um candidato encontra?

Num contexto decisivo para o futuro do PS e para o lançamento de um caminho não só de recuperação da capacidade de disputar o poder governativo, mas acima de tudo de redefinição interna no plano ideológico e político e até de refundação como partido social-democrata europeu, os socialistas distraem-se e iludem-se com a forma de reagrupar forças internas, de modo a que as elites que dominam o partido permaneçam no poder, sob a forma aparente de direcção renovada.


Ora, no plano da renovação, convenhamos que a escolha entre António José Seguro (n. 11/3/1962) ou Francisco Assis (n. 8/1/1965) não é muito alternativa. O percurso de ambos é o de gémeos verdadeiros que se autonomizam quando adultos, mas que são muitíssimo parecidos, pelo menos nas feições. Ambos vêm do guterrismo. E antes, nos anos oitenta, estiveram juntos na JS, quando Seguro integra a direcção de José Apolinário (1984-90), que António Costa, então em consonância com os dirigentes nacionais António Guterres e António Campos, lançou contra Porfírio Silva, o candidato apoiado pela líder cessante, Margarida Marques, olhados à época como a ala esquerda da JS. E mesmo quando António Costa se afasta da direcção Apolinário – data daí o seu corte para a vida com Seguro, cujas razões provavelmente apenas os dois conhecem – e inicia um trajecto que o conduzirá ao sampaísmo, Assis integra a equipa de Seguro na liderança da JS (1990-94).

Seguro é o candidato pensado há sete anos para substituir Ferro Rodrigues em nome do aparelho. E ficou, então, a saber da boca de Jorge Coelho, à mesa de um almoço na Curia, que o homem em quem o aparelho apostava era José Sócrates e não ele. Ao que parece, ainda hoje não lhe foi explicado o porquê daquela opção em 2004. Mas Seguro manteve pessoal e partidariamente viva a intenção de um dia ser candidato. E esperou pela queda de Sócrates. Fê-lo de forma cuidada. Mantendo a obrigatória distância. Não aceitando sequer nenhum lugar no aparelho de Estado ou qualquer cargo partidário. Manteve-se na reserva. Insinuantemente crítico, mas sem nunca agredir o Governo do seu partido. Jogou as regras do que se convencionou no jogo partidário português ser a não-ruptura. Isto é, Seguro não esteve dentro, mas não esteve fora, não esteve contra, não rompeu com Sócrates, como fizeram outras figuras do PS como Helena Roseta, João Cravinho, Ana Benavente, Medeiros Ferreira, Manuel Maria Carrilho. Por isso, Seguro pode recolher agora grande parte dos apoios do aparelho e viu já surgirem publicamente em sua consagração figuras que consigo integraram o universo Jorge Coelho.

É bom, aliás, não esquecer que se Seguro se afastou oficialmente do aparelho do PS nestes sete anos, ele é de facto um dos grandes senhores dessa máquina. Como exemplo, basta lembrar o seu papel como organizador das campanhas eleitorais de Guterres. É certo que os partidos são máquinas complexas e um líder tem que saber pelo menos que existem e como funcionam. Mas não é reduzível ao seu papel nas estruturas e aos seus conhecimentos e ligações partidárias. Ele foi líder da JS, organizou com Joaquim Pina Moura os Estados Gerais (1994-95), foi deputado à Assembleia da República e ao Parlamento Europeu e ministro adjunto de Guterres (2001-2) e líder parlamentar com Ferro Rodrigues. E no PE adquiriu uma perspectiva mais intelectual da política, foi notório então o quanto investiu intelectualmente em si. Preparou-se.

No plano político-ideológico, Seguro é, tal como Assis, também uma fi gura do universo do qual saiu Sócrates: a direita do PS, mais concretamente o guterrismo, esse herdeiro da linha socialista de raiz católica vinda da fundação e que teve como expoente máximo Salgado Zenha. Seguro nunca esteve, nem na JS, que liderou, nem no PS, com a ala esquerda deste partido, seja a esquerda sampaísta, sejam os seus herdeiros, os ferristas, seja a esquerda que vem na tradição dos velhos republicanos socialistas da fundação como, por exemplo, António Arnaut, que hoje se organizam em torno de Manuel Alegre. Apenas circunstancialmente, conjunturalmente e porque estavam ambos contra Sócrates, os alegristas e Seguro se aproximaram. Assim como é táctica a aproximação de Seguro e dos soaristas, que se vem desenhando.

Já Assis é apoiado por Sócrates e por parte da sua direcção. Mas Assis tem menos experiência do que Seguro em lidar com o partido, apesar de ter presidido à federação do Porto. Do ponto de vista político e ideológico, Assis é, ele também, um homem do guterrismo. Muito novo foi presidente da Câmara de Amarante (1989-95), deputado à Assembleia da República e ao Parlamento Europeu e líder parlamentar de Guterres (1997-2002) e de Sócrates (2009-11).

E sempre foi um teórico, um ideólogo. Precoce em tudo, até no deixar-se seduzir pela influência do neoliberalismo na social-democracia. Assis é um dos primeiros seguidores de Anthony Giddens e da Terceira Via de Blair no PS.

Agora ambos anunciam a disponibilidade para negociar com o PSD. Assis admitindo acordos. Seguro disponível para negociar, mas excluindo a revisão constitucional do PSD. E ambos garantem que querem debate interno. Resta esperar para ver se esse debate acontecerá. Ou se tudo se vai ficar pela reorganização.

São José Almeida
, Público, 18/06/2011
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