27.11.11

Tahrir


Mais um texto de Paulo Moura a não perder, na Pública de hoje (sem link):

«Era uma confiança tremenda, ou uma fantasia, uma presunção, ou uma gabarolice do povo. Digam o que quiserem. E, mesmo que as multidões de Tahrir tivessem o poder real de um exército, poder-se-ia ainda dizer que são uma força inútil, porque não sabem o que querem. Estive lá e confirmo: não fazem a mínima ideia. Mas as revoluções foram sempre feitas por quem não sabe o que quer. Os que sabem chegam depois, para as destruir. (…)

Outros países não têm Tahrir, o que os torna muito mais fracos. Nem podiam ter, é claro. As situações são incomparáveis. O maior desejo que os jovens egípcios ousavam exprimir, no auge do seu martírio, era o de uma democracia capitalista igual à que nos trouxe até à actual crise.

Hoje, só porque há Internet e telemóveis, tudo nos parece global, mas os ideais da Primavera árabe não têm nada a ver com os propósitos do movimento Occupy Wall Street ou os Indignados. Todos sabemos que não há nada em comum. E ao mesmo tempo todos sentimos que há.»


Na íntegra:
Temos sempre Tahrir

Ninguém sabe o que é Tahrir. Mas Tahrir existe. Lembro-me dos dias seguintes à queda de Mubarak. Muitos queriam continuar na praça. Não estavam satisfeitos. O que tinham conseguido era imenso, ainda assim pouco.
Era verdade que tinham fixado como objectivo a queda do ditador. Fora do Egipto, ninguém achava que isso fosse possível. No próprio Egipto, a maioria também não acreditava, a começar pelos que se fingiam mais optimistas. Mas, após muitos muitas manobras, muitas manipulações, Hosni Mubarak acabou por se demitir. Após muitos mortos também.
Foi o problema. Uma coisa são milhares de jovens manifestando-se e festejando numa praça. Tudo o que conseguissem seria um milagre. Outra coisa são esses jovens a morrer. Isso fez o preço subir muito. Uma vitória de Pirro já não seria suficiente. Nem sequer uma conquista simbólica em troca. Agora era preciso ir até ao fim. Mas o que era o fim?

Muitos queriam ficar na praça, mas a maioria não. As pessoas estavam cansadas, queriam retomar as suas vidas. “Já conseguimos o que queríamos, agora vamos dar-lhes uma oportunidade”, diziam, referindo-se ao novo poder militar. Novo? Não era exactamente o caso, mas tinha havido uma mudança forçada, e esse facto por si só configurava uma revolução. Representava o poder de Tahrir.
Era o que se ouvia por todo o lado: “Temos sempre Tahrir.” Se os militares não cumprirem o prometido, se a transição democrática se atrasar, se voltarem os velhos métodos repressivos, “temos sempre Tahrir”. Era uma espécie de lugar-alavanca, um património sem preço. Quando acharmos que é necessário, voltamos a Tahrir, e o mundo muda.
Era uma confiança tremenda, ou uma fantasia, uma presunção, ou uma gabarolice do povo. Digam o que quiserem. E, mesmo que as multidões de Tahrir tivessem o poder real de um exército, poder-se-ia ainda dizer que são uma força inútil, porque não sabem o que querem. Estive lá e confirmo: não fazem a mínima ideia. Mas as revoluções foram sempre feitas por quem não sabe o que quer. Os que sabem chegam depois, para as destruir.
A ditadura no Egipto já era militar. Mubarak não passava da ponta do icebergue. Os generais controlavam todo o poder político, e o económico também. Era um sistema totalitário e coeso, que a simples queda do Presidente não iria desmantelar automaticamente. O sacrifício de Mubarak, aliás, não terá sido mais do que uma jogada para manter incólume esse sistema.
Uma jogada de defesa, porém. Uma cedência. Pensaram que seria suficiente. Foi, mas só por uns meses. Agora, o povo voltou a Tahrir. E o incrível é que voltou com a mesma força. Voltou para morrer, outra vez.
O Egipto tem isso. Tem Tahrir. Os generais, gente esperta e pragmática, não o ignora. Nos seus jogos de estratégia com mapas e soldadinhos de chumbo, contam agora, descoroçoados, com essa força invisível e desconhecida no centro do Cairo.
Outros países não têm Tahrir, o que os torna muito mais fracos. Nem podiam ter, é claro. As situações são incomparáveis. O maior desejo que os jovens egípcios ousavam exprimir, no auge do seu martírio, era o de uma democracia capitalista igual à que nos trouxe até à actual crise.
Hoje, só porque há Internet e telemóveis, tudo nos parece global, mas os ideais da Primavera árabe não têm nada a ver com os propósitos do movimento Occupy Wall Street ou os Indignados. Todos sabemos que não há nada em comum. E ao mesmo tempo todos sentimos que há.
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