Estou de passagem no Qatar, um país insólito que, à primeira vista, poderia ser resumido em duas palavras: areia e petróleo. Mas só à primeira vista.
Não é fácil imaginar a vida concreta de cerca de 500 mil pessoas que não trabalham porque tudo lhe sé proporcionado gratuitamente e que ainda recebem cerca de 35.000 US$ / ano desde que nascem. Todas as tarefas são asseguradas por um milhão adicional de estrangeiros, bem pagos, mas que nunca adquirem a nacionalidade do país em que vivem, ou mesmo em que nascem: as segundas e terceiras gerações mantêm o «passaporte» dos seus ascendentes, o mesmo acontecendo às mulheres que casam com locais.
De resto, não existem impostos para ninguém, tudo é importado excepto o petróleo, constrói-se loucamente (num bairro que atravessei, existem neste momento 65 torres, serão em breve 192…), só se vê carros topo de gama e centros comerciais luxuosos, abrem-se campos de golfe que custam uma fortuna para serem mantidos verdes e criam-se cavalos, para todo o tipo de competições, com um estatuto absolutamente invejável: habitações com ar condicionado, piscina privativa, etc., etc.
É difícil encontrar qualquer semelhança entre o nosso mundo e este estranho modo de vida, onde tudo parece basear-se na convicção de que os recursos petrolíferos nunca se esgotarão e que o futuro se manterá próspero, como o presente, para todo o sempre… Será?
8 comments:
Estive este fim de semana com amigos regressados de umas curtas férias em Abu Dhabi. Contaram-me que várias pessoas se mostraram surpreendidas por verem portugueses; aquilo que ouviam nos telejornais era que o país era muito pobre, com pessoas a passar fome. Perguntaram-lhes, por isso, primeiro se seriam ricos, depois se eram membros do governo.
"Não é fácil imaginar a vida concreta de cerca de 500 mil pessoas que não trabalham porque tudo lhe sé proporcionado gratuitamente e que ainda recebem cerca de 35.000 US$ / ano desde que nascem."
O socialismo seria, idealmente, algo do género! Automatizar ao extremo o aparelho produtivo, distribuir as rendas pela população que poderia finalmente abolir o trabalho e dedicar-se a outras coisas. Da maneira como a Joana o apresenta parece um pesadelo.
(É evidente que eles vivem da renda do petróleo, mas se todos os cidadãos têm direito a uma renda tão grande, parece-me que estamos perante um caso de "socialismo num só país"... porque nos outros países produtores de petróleo é raro toda a população sair beneficiada.)
Na minha opinião, isto tem muito mais a ver com feudalismo do que com socialismo... O trebalho é feito por outros - os estrangeiros - que não têm direito a nada de graça (nem saúde, nem educação, etc.)
Isso do feudalismo até pode ser verdade na teoria, porque tanto quanto sei, é uma monarquia absolutista. Mas repare que o mesmo pode acontecer democraticamente: é natural que o meio milhão queira continuar a viver desse modo, negando democraticamente a partilha da riqueza com os imigrantes. E concordará comigo que muitas das restantes monarquias absolutistas da região negam aos seus próprios cidadãos um pedaço da riqueza conseguida com a venda do petróleo.
Neste caso hipotético de democracia assente na renda do petróleo, teríamos um caso semelhante ao socialismo cubano: todos os cidadãos têm direito a receber tudo de graça, e recebem ainda rendas extra. Mas ninguém se atreveria a chamar-lhe socialistas porque são todos ricos.
É apenas aí que eu quero chegar.
(Adicionalmente: por muito que custe aos socialistas, apenas a privatização do petróleo que existe no mundo, combinada com a abolição de fronteiras, nos tornará numa sociedade mais equilibrada.)
«É natural que o meio milhão queira continuar a viver desse modo, negando democraticamente a partilha da riqueza com os imigrantes.» Democraticamente? Ali nem se finge a existência de democracia. Mas claro que estariam de acordo se lhes fosse perguntado. Tal como os portugueses estariam, btw, se tivessem essa «oportunuidade»...
Desde quando é que, em Cuba, «todos os cidadãos têm direito a receber tudo de graça, e recebem ainda rendas extra»?????
"Democraticamente? Ali nem se finge a existência de democracia. Mas claro que estariam de acordo se lhes fosse perguntado. Tal como os portugueses estariam, btw, se tivessem essa «oportunuidade»..."
Então estamos de acordo: um referendo (democrático) daria como resultado a manutenção dessas regalias para os cidadãos. Conclusão?
"Desde quando é que, em Cuba, «todos os cidadãos têm direito a receber tudo de graça, e recebem ainda rendas extra»?????"
Em Cuba existe a famosa caderneta onde a ração é distribuída de graça nas lojas estatais. Recebem rendas extra (em formas de género, saúde, educação e habitação grautitas), sim, recebem-nas com fraca qualidade porque infelizmente não são um país com petróleo. Como se conclui, então, a diferença entre Qatar e Cuba é mais de grau do que de outra coisa.
Mas claro, Cuba é pobre, logo é fácil sujeitá-la à etiqueta de socialismo.
O seu post é estimulante e levanta questões fundamentais: a soberania e a propriedade sobre os recursos naturais.
Nenhuma dessas questões fica resolvida com os ideais da esquerda moderna assente na noção de Estado e no plebiscito como forma de onde nasceria a igualdade e a solidariedade.
A democracia não se esgota em referendos,é bem mais do que isso. esse hipotético referendo teria de incluir o milhão adicional que trabalha naquele país. Enquanto não aceitar isso, os seua argumentos são falaciosos.
«A diferença entre Qatar e Cuba é mais de grau do que de outra coisa»? Essa, desculpa lá a linguagem, não lembra ao careca!
É claro, não lembra ao careca porque num lado distribui-se a pobreza por todos, ao passo que no outro se distribui a riqueza! Duas faces do mesmo socialismo.
"A democracia não se esgota em referendos,é bem mais do que isso. esse hipotético referendo teria de incluir o milhão adicional que trabalha naquele país."
Joana, tenha paciência mas as políticas de imigração são fruto da política dos governos. Se o governo democraticamente eleito decide manter uma política de imigração restrita, como aliás TODOS os países de primeiro mundo, então estamos a falar de democracia, independentemente de ter resultados moralmente desastrosos.
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