1.2.19

Marcelo pode vetar o que se votou, não quem votou



«Penso que consegui demonstrar, no longo texto que escrevi há dois dias sobre a Lei de Bases da Saúde, que a clivagem entre as propostas do PS, BE e PCP, por um lado, e PSD e CDS, por outro, não é artificial. Não são questões simbólicas ou de retórica. A clivagem faz-se entre duas conceções do Serviço Nacional de Saúde. Uma vê-o como um serviço público, onde o valor do paciente não se mede pela sua rentabilidade, outro baseia-se numa indiferenciação entre público e privado onde, a bem a concorrência, o Estado está obrigado a financiar o sector privado.

No caso do PSD, defende-se que cabe ao Governo estabelecer incentivos à criação de unidades privadas de saúde, no caso do CDS propõe-se que o Estado recorra a seguros privados e adquira serviços públicos e privados em igualdade de circunstâncias. No caso do PS, BE e PCP, defende-se um SNS público que se socorra do privado nos serviços que ele próprio não pode garantir. Para a direita, o Estado é um mero financiador. Para os três partidos de esquerda, as lógicas do público e do privado são vistas como intrinsecamente distintas: o privado avalia a rentabilidade do paciente, o público não tem isso em conta. Isto faz com que o privado abandone o paciente que lhe dá prejuízo, enviando-o geralmente para os serviços do Estado (que ficam com tudo o que é mais dispendioso) e que aposte mais no tratamento do que na prevenção, que lhe retira clientela. São duas lógicas antagónicas. Trinta anos de financiamento público do sistema privado provam os péssimos resultados que tiveram para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde.

Apesar de haver quem tente inventar um consenso de décadas entre PS e PSD, a divergência sobre o papel do privado no SNS marcou todos os debates políticos sobre o tema desde o 25 de Abril. O que levou a direita a abster-se na lei de bases que criou o SNS (e a votar contra na especialidade), em 1979, e a aprovar sozinha, em 1990, a Lei de Bases da Saúde que ainda hoje está em vigor. Não é uma fratura nova, nem é uma fratura estéril. São dois olhares muito diferentes sobre o que deve ser o SNS. Isso não é, ao contrário do que parece, um problema. A democracia implica, em muitos casos, escolhas. E em alguns casos, casar o inconciliável dá mantas de retalho inviáveis e sem consistência. Tivesse o Presidente Ramalho Eanes obrigado o PSD e PS a entender-se, em 1979, e provavelmente não teríamos SNS.


Apesar deste histórico, e de nunca se ter ouvido da sua boca qualquer crítica ao facto de a lei que temos ter resultado de um voto isolado da direita, Marcelo Rebelo de Sousa fez saber que vetará uma Lei de Bases que não tenha o voto do PSD. A coisa é apresentada de outra forma: que não tenha um largo consenso. Mas todos leram como tem de ser lida: os votos do BE e do PCP não são relevantes para o consenso, como se a posição dos seus eleitores estivesse civicamente diminuída. O que quer dizer que o Presidente da República dá ao PSD o direito de veto sobre uma Lei de Bases contra a vontade da maioria dos deputados eleitos pelos portugueses. E se o vetar mantém-se em vigor uma lei que, por acaso, teve o voto contra do PS e não resultou de qualquer “largo consenso”. Vale a maioria de há 30 anos, não vale a atual.

O que se está a discutir não é um capricho repentino, que deita fora o que não foi experimentado. Apesar de ter merecido a oposição de toda a esquerda, a atual Lei de Bases da Saúde esteve em vigor durante três décadas. Foi experimentada, avaliada e provou-se inadequada, contribuindo, através da drenagem de recursos públicos, para o enfraquecimento do SNS. As propostas do PSD e do CDS não só mantêm o seu espírito como tentam aprofundá-lo. Um consenso entre PS e PSD daria uma coisa muito semelhante ao que temos. O que quer dizer que Marcelo Rebelo de Sousa está a bloquear uma mudança que, perante o estado do SNS, é urgente.

Se os deputados eleitos não podem, avaliando uma experiência de trinta anos, fazer uma reforma no sistema, as pessoas têm fundadas razões para sentir que o seu voto serve de pouco. E a verdade é esta: quando a direita governa, tem o discurso das reformas estruturais, para as quais se considera mandatada e dispensa, sem que isso mereça contestação, o voto do PS. Quando a esquerda governa, as reformas estruturais passam a depender do direito de veto do PSD.

Compreendo que os interesses privados da saúde sejam dos mais poderosos deste país. E que o Presidente, sempre disponível para a todos agradar, se sinta ele próprio pressionado a travar uma mudança que ponha fim à sangria de recurso de um sistema que, apesar de quase falido, é obrigado a financiar negócios privados. Mas fazer depender o veto de uma lei do voto favorável de um partido específico é uma deturpação dos poderes presidenciais. Marcelo pode vetar leis pelo seu conteúdo, não o deve fazer pelos seus autores ou apoiantes. Isso significaria substituir-se à maioria parlamentar.

Dirão que esta maioria é circunstancial. Como era a de 1979, que criou o SNS, e a de 1990, que aprovou a atual Lei de Bases. Como é o próprio Marcelo na Presidência. Em democracia, os decisores são sempre circunstanciais. Isso não pode ser argumento para lhes retirar o poder de legislar. Não é por acaso que há coisas para as quais se exigem maiorias qualificadas, como qualquer mudança constitucional, e outras não. A exigência de maioria qualificada não é, não pode ser, uma prerrogativa do Presidente da República.»

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