6.3.19

Quando os pesadelos parecem reais, é hora de acordar



«Imaginem um mundo de animais transformados. Porcos com genes humanos, para crescerem depressa. Galinhas com peitos maiores para renderem mais. Humanos que nascem quase sem libido, para diminuir a obsessão pelo sexo.

Nesse mundo a maioria das pessoas lutam todos os dias para sobreviver. Os alimentos escasseiam e têm de ser disputados com bichos estranhos que andam à solta. As catástrofes naturais destruíram grande parte das cidades. Alguns indivíduos vivem fechados em condomínios, protegidos de intrusos por seguranças armados. Aí a vida é tranquila e as necessidades básicas satisfeitas. Lá fora a rua é uma selva, nenhuma vida está garantida.

A queda da natalidade foi a desculpa final para impor uma nova ordem. Há comunidades à parte onde as mulheres férteis servem apenas para procriar. Cada uma pertence a um homem, várias ao mesmo, para assegurar a sobrevivência da espécie. Além das procriadoras, há as educadoras. As outras mulheres são inúteis, não têm lugar nas comunidades protegidas. Quem põe em causa a ordem estabelecida é morto em público, para dar o exemplo.

Se leram Oryx and Crake ou The Handmaid's Tale, livros de Margaret Atwood (o segundo transformado em série de televisão), reconhecem os mundos que descrevi.

A ficção científica nunca me atraiu e a escritora canadiana não me fez mudar de ideias. Deslumbram-me, claro, as ficções que conseguiram antecipar o futuro, como o submarino de Júlio Verne ou as redes de computadores de Isaac Asimov. Mas por cada previsão acertada existem milhares de seres e máquinas absurdos, que não respeitam as leis da física nem a natureza humana. Salvo exceções, prefiro ler sobre mundos plausíveis, sobre relações que podem ser reais.

Não é só o irrealismo que me afasta. A ficção científica, mesmo quando realista, é muito dada a distopias, como os livros de Atwood que referi. Sociedades disfuncionais, onde tudo o que valorizamos - a liberdade, a segurança, o conforto, a satisfação das necessidades básicas, a beleza, a amizade, a cooperação, a confiança no outro - é posto em causa por condições tecnológicas, ambientais e sociais opressivas. Neste sentido, não gosto de ficção científica como não gosto de filmes de terror. Não tiro prazer da angústia que provocam, muitas das vezes sem outro propósito para além da angústia em si.

Nada disto se aplica a 1984, de Orwell, nem ao Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago. São livros distópicos, sim. E são marcantes, pelo que nos mostram da natureza humana. Fazem-nos pensar no que existe através de mundos imaginários. Até há pouco tempo não incluía Atwood neste grupo de autores. Os mundos que descreve pareciam-me apenas catastrofistas, exagerados para lá do razoável.

Entretanto chegou à presidência dos EUA um homem que nega as alterações climáticas. À presidência do Brasil um defensor de armas para todos. Discursos de ódio emergem até nos lugares onde se julgavam extintos. Pretendentes a líder reclamam castigos de tempos medievais - e ganham votos com isso. Gente em lugares de topo diz que os meninos devem vestir de azul e as meninas de cor-de-rosa e dedicarem-se à família. As multinacionais testam tecnologias perigosas sem escrutínio. Os ricos levam ao poder quem lhes permite fugir aos impostos. As cidades dividem-se em guetos para pobres e bairros para as elites. Os protestos legítimos são reprimidos com violência e desinformação geral.

De repente apercebi-me de que já estivemos mais longe das distopias de Atwood. O mundo pode ser bem pior do que julgamos. Tudo o que já existe é mais do que um carnaval, mais do que um sonho mau. Temos de estar bem despertos.»

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1 comments:

susskind disse...

Dizemos querer construir uma sociedade sustentável no uso de recursos, amiga do ambiente, e tudo isso. Ao mesmo tempo, dizemos que o futuro está nas 'tecnologias verdes' (oxímoro delicioso), que vão solucionar os nossos problemas. As redes inteligentes, a inteligência artificial, já e em força. Entretanto, os 'data center' já consomem 10 a 15% da electricidade mundial, estando em crescimento exponencial, e já emitem mais CO2 do que os transportes aéreos (a China, mas não só a China, produz electricidade a partir do carvão...). Não é o 'peak oil' que nos espreita à esquina, é mais o 'peak everything'. Mas os nossos queridos líderes fazem como James Dean: aceleram em direcção ao precipício, enquanto os engenheiros e investigadores (prometido e jurado!) nos asseguram que miríficas asas estarão disponíveis no momento em que deixarmos de tocar o solo. Mais distópico do que isto? 'Digital is green', é um dos slogans da novilíngua. O Orwell havia de 'gostar'.