13.6.13

10 de Junho – Memória de dois massacres



Este texto de Artur Pinto foi enviado pelo autor ao Público, antes da data a ser assinalada, mas não chegou a ser publicado. Divulgo-o eu neste blogue.

Lídice, República Checa, 10 de Junho de 1942, pouco depois da meia-noite.

Lidice é um daqueles casos em que o regime nazi demonstrou da maneira mais cínica e brutal toda a sua bestialidade, ainda antes do programa de extermínio. O que se passou em Lídice antecipa os horrores dos campos de extermínio – em certo aspecto até terá sido mais requintado, cruel e vingativo, acima de tudo. O certo é que, em ambos os casos, os factos são pouco conhecidos porque pouco divulgados. Aqui fica a minha contribuição para contrariar esse esquecimento.

A 27 de Maio de 1942, em Praga, paraquedistas checos, vindos de Inglaterra, assassinaram o Reich Protector, Reinhard Heydrich, um dos delfins de Hitler e ideólogo da Solução Final. Hitler ordenou ao substituto de Heydrich que executasse uma punição exemplar contra a população checa.
Em 10 de Junho, ocorreu o massacre que ficou na história pela sua extrema crueldade. A Gestapo suspeitou que haveria ligação entre a família Horák, na pequena aldeia de Lídice e um dos membros do comando paraquedista. Perante esta suspeita, tomaram a decisão de vingar Heydrich em Lidice. Mas não foi uma simples vingança, não se “limitaram” a chegar, massacrar os seus habitantes, lançar fogo à aldeia e continuar, como em Oradour ou como por toda a Ucrânia e Rússia.
As tropas alemãs chegaram à aldeia pouco depois da meia-noite e cercaram-na. Todos os homens com mais de quinze anos - eram 173 - foram separados das mulheres e das crianças e fuzilados em pequenos grupos, nesse mesmo dia. Quando já havia uma pilha de mortos, os que se seguiam eram obrigados a subir para cima da pilha para serem fuzilados. Mas os serviços alemães souberam que havia habitantes internados em hospitais de Praga. Foram à procura deles e mataram-nos. Para que não restasse algum sobrevivente, foram ao requinte de ir à pocura de um homem que não estava na aldeia, porque mudara de turno na fábrica. Fuzilaram-no. Não satisfeitos com esta matança, exumaram os cadáveres do cemitério. Lídice não só não poderia ter sobreviventes, como das famílias não poderia haver memória.
Três dias depois as mulheres foram separadas dos seus filhos. Destes, a larga maioria foi assassinada por asfixia no campo polaco de Chelmno, com gás carbónico que emanava de camionetas adaptadas, a primeira experiência de extermínio em massa. As mulheres foram enviadas para o campo de Ravensbrück onde a grande maioria veio a morrer de tifo e exaustão.
Mas a vingança perversa, cruel e odiosa, estava por consumar. Os nazis tinham decidido riscar, literalmente, Lídice do mapa. Lançaram fogo à aldeia, depois dinamitaram as casas e arrasaram tudo. Até as árvores, mesmo as queimadas, foram arrancadas pela raíz. Por fim, transformaram toda a área em pastagens. Da aldeia nada ficou e até ao final da guerra esteve vedado o acesso a toda a área. O seu nome desapareceu dos mapas alemães da Europa. A vingança alemã pelo assassinato de Heydrich saldou-se em cerca de 1500 mortes por toda a Checoslováquia.
Contrariamente ao que sucedeu com outros crimes de guerra que mantiveram em segredo, a propaganda nazi fez questão de filmar a maior parte dos acontecimentos de Lídice, para os dar a conhecer, servindo de exemplo e de aviso à população da Europa ocupada. A notícia causou uma onda de terror e indignação mundial e a propaganda aliada aproveitou o facto para difundir os crimes do III Reich. Lídice tornou-se um símbolo da crueldade nazi. 

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Oradour-sur-Glane, França, 10 de Junho de 1944, cerca das duas da tarde.

A crueldade expressa-se, uma vez mais, num infernal ciclo de terror sem fim, dois anos depois, no mesmo dia, nesta aldeia, perto de Limoges. Nem se sabe ao certo quais as razões que levaram a mais este massacre. Até aí nenhum incidente grave, digno de registo, pusera no mapa da repressão nazi aquela pacata aldeia, embora a região de Limoges fosse conhecida por ser uma área de grande actividade da resistência. Há quem julgue tratar-se de um engano dos SS, que deveriam querer «castigar» Oradour-sur-Vayres, importante centro do “maquis” na mesma região. Em todo o caso, estava assente que ia haver genocídio.
As tropas alemãs praticaram aqui um dos seus habituais rituais de terror: massacrar a população, incendiar a aldeia e partir. Reuniram a população no Campo da Feira e fizeram a triagem habitual: os homens de um lado, mulheres e crianças do outro. Até pessoas de fora que passavam na altura pela aldeia e passageiros do comboio que chegara, foram reunidas com os outros. Depois, levaram os homens para diversos celeiros e garagens e levaram a cabo o massacre de forma atroz: atiram para as pernas para a morte ser mais lenta, cobrem os cadáveres com palha e com tudo o que possa arder e queimam os corpos, alguns ainda vivos. E afastam-se.
As mulheres e as crianças foram encerradas na igreja, lugar sagrado destinado para outro drama. Depois de longas horas de angústia, adivinhando o que teria sucedido aos homens, eis que a porta se abre e entram dois soldados. Voltam a fechar a porta, vão direitos ao altar onde colocam caixas de explosivos, acendem os cordões detonadores e saem. Segue-se uma violenta explosão, parte da igreja desmorona-se, mulheres e crianças ficam soterradas nos escombros. As poucas que escaparam tentam fugir pela porta da sacristia. Emboscados no exterior, os soldados alemães abateram-nas uma a uma. Por fim, lançaram fogo à aldeia.

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No local da primitiva aldeia de Lídice, ergue-se hoje um Memorial, constituído por um imenso parque verde com um monumento às crianças assassinadas e um Museu onde sobressai um mural com os nomes de todos os habitantes, outro com as fotografias dos homens e, ainda, a porta da igreja e restos de roupas de uma criança, únicas testemunhas deste massacre sem par. A simplicidade do museu e o seu despojamento, lembrando o vazio de Lidice, esmaga-nos.
Em Oradour tudo está como os alemães deixaram: casas incendiadas, algumas ainda com objectos de uso pessoal, carros calcinados nas ruas, a igreja só com as paredes laterais. Aqui há uma grande angústia, um permanente arrepio, diria que se pode “viver” a aldeia e imaginar melhor o massacre, até porque as casas estão identificadas com os nomes dos seus proprietários: aqui Mme Reignier, dentista, ali o café Chez Compain, mais além a casa da costureira Emma Lebrau, na rua principal a garagem do senhor Desorteaux.

A conclusão deixo-a ao padre Chaudier, na homilia de Limoges, a 18 de Junho de 1944: «Certes, nous savions qu’il n’est pas possible “d’humaniser la guerre”.... Il nous restait à apprendre qu’il y a des degrés dans l’horrible, toute une graduation dans l’épouvantable…»
[É certo, sabíamos que não é possível ‘humanizar a guerra’ … Ainda nos faltava aprender que há graus no horrível, uma escala no inimaginável]

Lídice e Oradour-sur-Glane, duas datas e dois lugares a recordar, sempre.
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