3.8.19

O que não mata engorda



«Foi vendido em Lisboa um apartamento por 7,2 milhões de euros. 287 metros quadrados, diz a “Visão”. O caso é tão estapafúrdio que não representa nada, mas usemo-lo para, através do absurdo, percebermos como rola o dinheiro no mercado imobiliário. E para concluirmos que as câmaras municipais têm um incentivo para participar alegremente em bolhas especulativas, mesmo que isso provoque hoje o afastamento de cidadãos dos centros das cidades e possa provocar amanhã falências pessoais e entupimentos de balanços bancários.

Há um caudal de lucros e de pagamentos num negócio como o agora noticiado, desde o construtor ao dono do terreno, desde as comissões do agente imobiliário aos juros do banco financiador. E há o Estado e as autarquias. Se o valor noticiado está correto, a Câmara de Lisboa recebe cerca de 430 mil euros de IMT nesta venda e cobrará doravante uns 20 mil euros por ano em IMI. Numa só casa. E em todas? A resposta está no crescimento das receitas de IMI e IMT, que em seis anos quase quadruplicaram nesta cidade. Lisboa, assim como o Porto (a segunda cidade que mais cobra, ainda que a grande distância da capital), está a nadar em dinheiro de IMI e IMT. Em todo o país, foram cobrados 2,6 mil milhões de euros nestes dois impostos no ano passado, mais 50% do que em 2013. Um maná.

Uma das questões importantes é observar o que cada autarquia está a fazer com esse dinheiro, desde redução de dívida a investimentos sociais. Mas o que aqui se pretende realçar é o incentivo, que sempre existiu, para que as câmaras licenciem, deixem construir e sintam o paradoxo de que contribuir para travar o encarecimento dos preços das casas lhes custaria dinheiro, o dinheiro que deixariam de receber em impostos e taxas. Se o IMI e o IMT não fossem receitas autárquicas, esse incentivo não existiria e o Estado central poderia aliás repartir essas receitas por municípios menos favorecidos. Mas as autarquias jamais abdicarão de ter essas receitas como suas: seria o fim do mundo político em cuecas.

Parte destes impostos nem é hoje pago por portugueses, dado o investimento estrangeiro no imobiliário, desde reformados com isenções fiscais a grandes fundos de investimento que hoje são donos das zonas mais centrais de Lisboa. Mas parece pouco discutível que existe uma bolha imobiliária em Portugal, localizada nas grandes cidades, e que ela se esvaziará um dia com mais ou menos estrondo, e basta que a política monetária do BCE volte à normalidade para que o peso dos juros pese nas carteiras dos endividados. Até lá, as autarquias rebolarão em dinheiro e as classes médias rebolarão dos centros para fora.

Quando olhamos para o valor dos impostos e das taxas arrecadado em Portugal, e superamos a discussão inútil do conceito de carga fiscal, percebemos que a máquina se tornou dependente de uma cobrança de impostos que galopa todos os anos para novos recordes. A administração tributária é incentivada à cobrança, mesmo que isso signifique deixar de fazer relatórios de controlo, como o “Negócios” noticiou esta semana. E os contribuintes já estão há tantos anos a pagar tantos impostos que parecem ter aceitado como normal o que devia ser qualificado como abuso. Não, não é normal. Mas é também a prova de que o “milagre português” não é milagre nenhum, é um Estado que cobra muito e investe pouco, que mesmo assim falha na prestação de serviços públicos, que carrega uma dívida por ora suavizada pelos juros baixos. O que não nos mata engorda-os.»

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