24.4.20

O vírus da amargura



«No último fim de semana, a passear bem longe de todos a minha cadela por uma zona de Monsanto, em Lisboa, vi várias famílias, cumprindo a distância de segurança, deitadas em mantas ou mesmo em piqueniques. Ninguém ali estava a pôr ninguém em perigo, mas tive a certeza que muitos, talvez a maioria, se vissem aquela cena ficariam horrorizados. Não deixariam de recordar que estão fechados em casa há semanas e que aquelas pessoas não tinham o direito a desfrutar assim daquele momento. Eu fiquei contente por haver quem não deixa que o contador que abre todos os telejornais lhes tire a irreprimível vontade de ser humano. Obrigado.

Sei que o que escreverei aqui, com os nervos de muitos à flor da pele, irritará muita gente. Espero, por outro lado, que alivie os que se sentem sufocados pelo cerco opressivo da vigilância social que ultrapassa em muito as exigências da pandemia. Os que recusam ser regulados pela irracionalidade do pânico que quer ir para lá do estado de emergência. Uns exercem essa opressão por medo. Um medo que deixaram de conseguir controlar e que vai muitíssimo para lá dos factos ou das exigências sanitárias. E querem impor-nos o seu próprio medo, como se ele fosse uma lei da República. Outros sentem finalmente a possibilidade de opinar sobre a vida dos outros, limitá-la, julgá-la. O vírus deu-lhes, julgam, esse direito constitucional. E estão a adorar. Outros, com quem sou bem mais compreensivo, estão corroídos pelo ressentimento. Impedidos de ver quem mais amam, alguns impedidos de se despediram de quem gostam, exigem justiça. Querem impedir cerimónias oficiais que têm garantias de segurança que nenhum funeral ou festividade pode ter ou irritam-se com pequenos momentos de lazer em que está garantido tudo o que é necessário para a distância social exigida. Posso tentar compreender a revolta, mas as medidas de controlo da pandemia não seguem nem têm de seguir critérios de justiça. Seguem critérios de eficácia. E tudo o que não corresponda a um risco pode e dever feito, mesmo que seja injusto perante coisas bem mais importantes que, por razões práticas, foram interditas. Porque a justiça levaria a que todos tivéssemos de sofrer tanto como os que mais sofreram. E não é assim que se vive em sociedade.

Preocupam-me os que perderam ou podem perder o emprego. Preocupam-me os que estão a passar por isto sozinhos, sobretudo os mais velhos. Preocupam-me os têm fragilidades físicas ou psicológicas que tornam isto muito mais insuportável. Sobretudo as mais sensíveis para este momento, que os põem em perigo especial. Preocupam-me os que perderam alguém, num tempo como estes.

Mas é bom dizer uma coisa, um pouco difícil por estes dias, àqueles que apenas estão, sem riscos físicos e sociais suplementares, em casa à espera de ir trabalhar: é difícil, mas já se viveram e vivem coisas bem mais dramáticas do que estar em casa umas semanas. Sofro pelos velhos isolados e os que perderam o seu emprego e o seu sustento ou os que perderam pessoas queridas. Quanto aos que estão apenas transidos de medo e que querem que o seu medo compreensível mas apenas seu nos sufoque, só peço que respeitem quem, não pondo em perigo a vida de ninguém, se quer sentir vivo e gosta disso. É bom ter pressa para voltar à normalidade. Pouco saudável é querer ficar fechado eternamente. Querer ser feliz não transmite nenhum vírus. Pelo contrário, há um vírus de que temos de nos livrar rapidamente: o que transmite doenças como a amargura, o ressentimento e a irreprimível tentação de querer que os outros sofram no nosso lugar.»

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