17.8.20

O lar de Reguengos e o preço de encerrar um país pobre



«Não é apenas em Portugal que os lares são os espaços mais sensíveis para esta pandemia. Cá, acrescem problemas como a pouca qualificação dos funcionários e os lares ilegais. Será a justiça a avaliar o que a lei pode punir, caso se confirme a macabra conclusão do relatório da Ordem dos Médicos que a ministra decidiu que não valia a pena ler antes de dar uma entrevista em que este seria, previsivelmente, um dos temas principais. Não é todos os dias que se descobre que pessoas institucionalizadas morreram desidratadas. Por isso, é justo que as falhas na fiscalização e a responsabilidade política da ministra em relação ao que aconteceu no lar de Reguengos dominem o debate público. Sobretudo depois da entrevista catastrófica que deu ao Expresso.

Mas é bom recordar que a responsabilidade primeira é da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, proprietária do lar e dirigida pelo presidente da Câmara. É injusto sublinhar o trabalho extraordinário do sector social quando corre bem e ficar pelas responsabilidades de fiscalização do Estado quando corre mal. Quando se trata de transferir funções sociais do Estado o sector social está acima de qualquer suspeita, mas quando há ganhos políticos a tirar de uma tragédia lá se descobre que também nele reina a promiscuidade com interesses partidários (e económicos, e religiosos). Porque este é um problema transversal ao país, não apenas no Estado.

Sei que todos preferiam ficar por aqui. Mas há uma culpa coletiva que pesa sobre os nossos ombros. Alimentamos um equívoco há meses: o de que instigar o medo nas pessoas levaria a que se preocupassem mais com os mais vulneráveis, a começar pelos velhos. Nunca foi assim nas pandemias. Para além de revelarem as fragilidades que já existem na sociedade, elas tendem a exibir os instintos mais primários e egoístas. E é por isso que os velhos de Reguengos foram abandonados. Porque o medo foi instigado até à crueldade. É verdade que, pelo menos ali, os problemas nem sequer começaram com o covid. Ele só agudizou o abandono. Ali e um pouco por todo o lado. O isolamento em relação às famílias e à sociedade nunca poderia ser bom para os mais velhos. Era só mais fácil, no meio do pânico.

Agora, que começa a vir à superfície o preço encerrar um país pobre em casa e nos lares, serão os que exigiram que isso se fizesse depressa, em força e sem ponderações os mais lestos a procurar os culpados pelos custos do confinamento. As doses cavalares de medo, que a absurda repetição quase diária em telejornais do número de mortos e infetados alimentou, tem forte responsabilidade no abandono destes velhos. E nos muitos que morreram por não procurarem ou não encontrarem apoio médico noutras doenças. E nas crianças roubadas do seu crescimento saudável. E no suicídio económico do país.

Estou nos antípodas da irresponsabilidade de um Bolsonaro ou de um Trump. Há uma pandemia e temos de ter cautelas. Mas a morte pela cura está mesmo a consumar-se. E estas mortes terão de pesar na consciência de quem, mesmo depois delas, não tenha a coragem de correr alguns riscos no regresso ao mínimos de normalidade. Comecemos por nos redimir abrindo todas as escolas, já em setembro, apoiados em estudos que nos dizem que é isso mesmo que temos de fazer.

Quanto aos lares, espero que este macabro episódio (que, como escreveu o Henrique Raposo, mobilizou menos indignação do que a tragédia de Santo Tirso) tenha pelo menos servido para deixar claro que o isolamento dos velhos nos lares é um crime. Morrer velho por causa de uma pandemia é, desde que às vitimas tenha sido dado o direito de escolha lúcida e informada, uma tragédia. Mas faz parte das tragédias humanas. Morrer abandonado e desidratado é uma inaceitável crueldade. Todos acabaremos por morrer, mas as mortes não são todas iguais. Pelo menos no que dizem da sociedade em vivemos.»

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