26.3.21

Cândidos e contentes

 


«Tinha de ser um francês. Numa semana recheada de más notícias, indecisões, atrasos, confinamentos, vagas de infeções e planos frustrados sobre a vacinação e a guerra das vacinas, o comissário europeu Thierry Breton anunciou, e foi logo expandido o bravo anúncio por todos os media, que a imunidade coletiva da Europa chegaria no dia 14 de julho. Num dia específico. Dia 14. De julho. Ninguém na União Europeia se lembrou de perguntar como é que um homem de negócios, sem nenhuma credencial científica ou outra exceto como ex-ministro das Finanças e professor da Harvard Business School (e sabemos como a menção de Harvard faz tombar todas as dúvidas dos descrentes e das massas ignaras) é capaz de prever um acontecimento destes, o Graal do corona, a imunidade coletiva, com uma precisão destas. Nenhum cientista se aventurou nestas paragens. Nem o dr. Fauci.

Monsieur Breton, francês de gema, educado nas escolas de elite de Paris, nem hesitou. Saído dos ares condicionados e rarefeitos da Comissão Europeia, onde responde a Ursula von der Leyen, para a luz clara da realidade da pandemia e do fracasso das vacinas na Europa, Breton vaticinou que, em breve, tudo estaria resolvido. O mundo subdesenvolvido pode estar infetado ou morto, e sem vacinas, mas nós, na Europa, estaremos protegidos e de regresso à boa vida bebericando champanhe nas esplanadas dos cafés. As variantes que virão dos outros, dos estrangeiros, não nos afetarão porque teremos no bolso o passaporte verde e na mucosa nasal a imunidade. À míngua de hospedeiros, o vírus definhará. No dia 15 de julho, estaremos livres.

Porquê o 14 de julho? Aqui, entra a França. Derrotada na guerra da descoberta das vacinas, a França reclama para o seu Dia da Bastilha, o seu feriado nacional, o seu 14 de julho, o fim do medo da pandemia e mesmo da dita pandemia. Dá imenso jeito ser no dia da Tomada da Bastilha que inaugurou a Revolução Francesa, porque neste dia podemos comemorar com uma data gaulesa a vitória sobre o vírus que veio da China (como vem tudo o resto). Os franceses poderão sair para a rua e dançar não ao som da derrocada do poder aristocrático, e da tomada do poder pelo povo e a burguesia, mas ao som da agonia viral. Com esta conversa, Breton espera, esperemos, dar aos revoltados franceses uma esperança e impedir a tomada do Eliseu no ano que vem pela senhora Le Pen, armada de furor revolucionário.

E tudo isto se passa no ano da graça de 2021, cumprido um ano de catástrofes acumuladas, sem que ninguém se interrogue se será aceitável continuar a ouvir este tipo de inanidades, semelhantes às de outros políticos que acham que a estupidificação das audiências e a anestesia geral que a pandemia e os confinamentos induziram se curam, como a miséria e a morte que o vírus provocou e provoca, com solipsismos otimistas.

O otimismo leibniziano do professor Pangloss, claro. Temos de reler o “Cândido”, de Voltaire, francês com mérito, que ridiculariza na novela picaresca os governos, os exércitos, os filósofos, os teólogos, e, claro, o otimismo de Leibniz. Cândido chega à conclusão que os sistemas falham e que mais vale sobreviver confiando em nós, cultivando “o nosso jardim”. Sendo hoje um dos livros do cânone ocidental, ensinado, lido e cultivado nas escolas que o senhor Breton frequentou, “Cândido” foi imediatamente banido apesar de publicado na clandestinidade, e considerado um livro blasfemo, um manifesto contra os intelectuais e um crime de sedição. O terramoto de Lisboa de 1755 foi uma das inspirações de Voltaire, uma cidade devorada pelos incêndios e pelas águas do tsunami que galgaram as ruas. Não, não podíamos estar, leibnizianamente, no “melhor dos mundos possíveis”.

Voltaire era um autor que utilizava a sátira para as suas avaliações filosóficas servidas por uma pena literária. “Candide ou L’Optimisme” é a obra de um humanista que quis combater o pensamento feito e o fanatismo religioso. No século das Luzes, a lucidez de Voltaire batia-se pela liberdade de expressão, a plataforma superior da política.

Um século depois, em “Bouvard et Pécuchet”, um livro admirável sobre a estupidez, Flaubert elevaria o conceito de ideia feita a uma espécie de proposição filosófica. “Bouvard et Pécuchet”, publicado postumamente em 1881, inacabado, é um tratado sobre a vulgaridade que se pretende intelectual. Estranhamente presciente do fenómeno das redes sociais e da opinião generalizada e inútil que hoje por aí abunda e orneia em todas as plataformas do narcisismo contemporâneo. A selfie do cérebro comum. Bouvard e Pécuchet são dois homenzinhos ociosos que se interessam por tudo, todas as ciências, religiões, filosofias, teologias, sistemas, literaturas, e tudo debatem e manuseiam sem nada saberem ou aprofundarem. Querem elevar este sistema de ignorância a uma pedagogia. Um amontoado de ideias superficiais que reproduzem as generalidades da bêtise humaine. Na Europa, depois da revolução de 1848, o debate político era aceso e os dois reformados postados numa pastoral e medíocre existência, observam-se ao espelho como dois intelectuais ativos e informados. Mais não fazem do que associar-se a um movimento geral de falsas tranquilizações perante a incerteza de um tempo em mutação.

Toda a história do combate à pandemia na Europa, o continente mais culto do planeta, e que os politicamente corretos me deixem em paz porque considero a cultura do Ocidente a mais perfeita e a mais sofisticada, a que nos habilita, nós, europeus, a compreender o mundo em que vivemos, é uma história de falsos otimismos. Os políticos, perante a adversidade e a hipótese do erro, acharam que a propaganda virtuosa os salvaria do desastre. O desastre seria percebido como uma catástrofe natural, como um terramoto, sem intervenção humana. Ora, foi a intervenção humana que falhou. Os políticos continuam a acenar-nos com um mundo pós-pandemia que estaria intacto para nos receber e à nossa jovialidade. Se estivermos vacinados, o turismo regressará. Se estivermos vacinados e com um passaporte poderemos salvar o verão. Se estivermos vacinados, a vida regressará como dantes. No dia 14 de julho.

A experiência demonstra que nenhuma destas bêtises acertará no pleno. O que os políticos teriam de fazer, e seria um exercício intelectual em vez de voluntarista, era prever e prevenir o pior cenário. O que nunca fizeram. O SNS colapsou? Colapsou. Que dizemos? Dizemos que não colapsou. Em Portugal, o que faremos se o turismo não regressar? O que faremos se a aviação não se salvar? O que faremos se as variantes do planeta não vacinado tornarem as vacinas obsoletas? O que faremos se os confinamentos em acordeão matarem uma economia sem recursos e sem riqueza? O que faremos se as alterações climáticas inutilizarem as decisões do presente, como a do aeroporto? O que faremos quando tudo arde? Em vez da preparação para o pior, atiram-nos migalhas de planos falseados, esperanças falseadas e promessas falseadas, incluindo a ‘bazuca’, um conceito dotado da espessura da ignorância. E assim nos manteremos cândidos.»

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