23.3.21

Pontue a verdade. Se não gostar, damos-lhe outra

 


«No "Daily Telegraph", equaciona-se vincular uma parte do salário dos seus jornalistas ao número de cliques que tenham os seus artigos e ao número de assinaturas geradas. Pelo menos, o "Guardian" assim o garante, depois de ter acesso a um mail dirigido aos funcionários e ter recolhido vários testemunhos. Pelo que consegui perceber, a informação não foi totalmente confirmada pelo jornal visado. Certo é que, por dificuldades técnicas, a medida não avançará já. Mas o editor do jornal considera justo que aqueles que trazem mais leitores sejam mais bem pagos. Os jornalistas indignaram-se e levantaram objeções, esperando que seja uma ideia louca que passará. Tenho uma notícia para lhes dar: não passará. Mais tarde ou mais cedo ela vai chegar a quase todas as redações. Já é esse o espírito instalado, quando, nas redações, há painéis com tráfego online de cada notícia.

É provável que muitos jornalistas e editorialistas do "Telegraph", conotado com a direita (enquanto o "Guardian" é mais ligado à esquerda), tenham defendido esta lógica para muitas atividades. Que a produtividade deve ser medida e premiada no salário. À partida, parece justo. Todos já tivemos colegas que, fazendo pouco e esforçando-se nada, recebem o mesmo que todos os outros. E sabemos o mal que isso faz a uma organização. Todos, da esquerda à direita, valorizamos o mérito e o esforço. Mas não há nada como uma proposta destas aplicada ao jornalismo para se perceber a perversidade da lógica produtivista como ética geral do trabalho. Sobretudo a atividades que tem funções sociais, como o jornalismo, a medicina ou na academia.

Não é por acaso que jornalistas de um meio de comunicação social conotado com a direita se indignam com esta proposta, na liberal Inglaterra. Ela corresponde à destruição do jornalismo. O critério de um jornalista que recebe por cada clique não será o da verdade, muito menos num tempo em que as pessoas deixaram de a distinguir da mentira. Não será o da relevância. Quem perderá tempo a escrever sobre cultura ou assuntos internacionais? Que pobre miserável se entregará a ler e a explicar estudos ambientais? A tratar de temas complexos e aborrecidos? Mesmo que sejam os mais relevantes para o futuro de um país ou do mundo. Quem dará tempo a minorias se é a maioria que o pontua? O critério também não será o da sobriedade. Aquilo a que já assistimos em títulos de jornais, enganadores para puxarem pelo clique desprevenido, passaria a ser incontornável para o jornalista que não quisesse viver na penúria.

Hoje, muitos jornalistas são escravos de editores e diretores que abandonaram a sua fidelidade ao jornalismo para se transformarem em meros representantes do acionista na redação. Com esta proposta, passam a ser escravos dos leitores. Parece bom? É péssimo. Um jornalista que dá aos leitores o que eles querem não faz jornalismo. Não lhes conta coisas incómodas. Não segue o critério da relevância. Substitui o interesse público pelo interesse do público. O interesse público norteia o jornalismo, o interesse do público norteia o comércio.

A maioria dos jornalistas (e também dos comentadores) vive entalada entre o seu dever deontológico e social e a atividade empresarial da imprensa. Não é a única atividade em que isso acontece e isso não é, por si só, um problema incontornável. Quando empresas privadas de comunicação social deixam de procurar o lucro até nos devemos preocupar: quer dizer que os acionistas procuram comprar influência política por via do jornalismo. Como em muitas outras atividades, a regulação e a autonomia deontológica dos profissionais deveria garantir que os planos não se confundem. Os jornalistas fazem jornalismo, não são meros produtores de conteúdos.

O problema é que, de uma economia de mercado, passámos para uma sociedade de mercado. Permitimos que, em vez desse equilíbrio e dessa tensão, que exige conflito e regulação, a ética do mercado tomasse conta de todos os domínios da nossa vida. Como em todos os momentos em que a balança cai demasiado para um lado, as coisas correm mal.

Transformar cada artigo ou cada jornalista num produto torna o jornalismo inviável. Mata toda a sua ética e todo o seu propósito. E fomos nós, jornalistas, que deixámos que isto acontecesse. Assumindo que vender notícias era a nossa função. Permitindo que as administrações dos órgãos de comunicação social entrassem nas redações. Abdicando de poder e de autonomia. E assumindo guerras comerciais entre empresas de comunicação social como uma questão que nos diz respeito. Não diz. É assunto dos acionistas.

A lógica das estrelas que damos aos motoristas da Uber, que achamos excelentes por nos darem a ilusão de ser patrões, vai infetar todos os domínios da nossa vida. E vai afetar o jornalismo crítico - ou o que sobra dele. Perde-se a própria ideia de jornalismo de referência, que não pode depender de cada notícia, mas do conjunto coerente que deve ser um jornal. O jornalismo incómodo não é o jornalismo popular e populista, que simula afetar os poderes estabelecidos enquanto torna quem o lê, quem o ouve e quem o vê cada vez mais desinformado. Não é aquele que indigna o público, provocando o gesto imediato de clicar numa notícia e pontuá-la. É o que alimenta o que de menos imediato existe em nós: a inteligência. É o que faz o leitor pensar e perceber a realidade.

Quando um jornal de referência, como o "Telegraph", começa a pensar em institucionalizar no salário o clickbait, sabemos que o jornalismo incómodo vai morrer. E o jornalismo incómodo é o que incomoda o público. Porque perturba verdades feitas em vez de as confirmar. Porque faz pensar antes de reagir. Não se queixem os que, na imprensa, acham que a ética do mercado tudo resolve. Ela aí está, para ditar a verdade. Se uma verdade não vende, não interessa. Se nos incomoda, dão-nos outra.»

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