8.5.07

«Eu falei na PIDE»


Têm sido publicados muitos estudos sobre os presos políticos durante a ditadura. Mas ainda não encontrei nenhum (falha minha?) que se debruçasse, especificamente, sobre a problemática de quem não resistiu à tortura e, por esse motivo, denunciou pessoas e factos.

Foi este texto de João Tunes, no Água Lisa(6), que me levou ao depoimento de Nuno Teotónio Pereira numa obra recente (*). Considero importante que NTP tenha assumido publicamente que falou na prisão, sob tortura, provocando a prisão de outras pessoas (já o tinha feito na RTP, em entrevista a Ana Sousa Dias, julgo que em 2004). Como diz J. Tunes no texto acima referido, este facto «...levanta a questão de quanta parcialidade e composição do retrato histórico do antifascismo é difundida através dos depoimentos oficializados e considerados correctos na absolutização da dicotomia de heróis para um lado (os resistentes) e diabos para outro (Salazar e pides). Como se fosse possível uma tal grandeza universal numa qualquer comunidade clandestina, género “fábrica de heróis”...». Num outro texto do mesmo blogue, J. Tunes retoma a questão e relata um caso real elucidativo.

Julgo que é necessário que se aborde claramente esta temática, deixando de tratar hagiograficamente – ou farisaicamente – os resistentes ao fascismo.

Estou especialmente à vontade para abordar este assunto. Nunca fui presa (talvez com alguma sorte). Sou viúva de alguém que cumpriu uma pena de seis anos e que, apesar de nove dias consecutivos de tortura do sono, se recusou a responder a toda e qualquer questão durante os interrogatórios, incluindo a que dizia respeito à confirmação da sua própria identidade. Um dos meus amigos mais próximos, quando esteve preso e teve medo de falar, cortou parte da língua. Conheci, pessoalmente, muitos outros casos de gente que não abriu a boca. Nunca deixarei de os admirar profundamente, pela força e pela coragem, absolutamente notáveis, por vezes brutais, que revelam.

Teria eu falado se tivesse sido torturada? Nunca o saberei, mas tenho que admitir que sim, já que não vislumbro em mim quaisquer características especiais de heroicidade.

Acho que é tempo – antes que seja demasiado tarde para alguns – não de apagar os factos mas, muito pelo contrário, de os trazer à luz do dia, de mostrar a sua dimensão e os seus contornos. Não para denunciar, nem para justificar – simplesmente para repor a verdade e para matar fantasmas. De que forma? Não sei exactamente. A colaboração dos próprios é indispensável mas muito difícil, o que só por si evidencia a complexidade e a importância do problema.

Mas é ou não fundamental que fique claro que a conquista da democracia não foi (só) obra de santos e de mártires?


(*) Rui Galiza e João Pina, Por Teu Livre Pensamento..., Assírio & Alvim, Lisboa, 2007.

4 comments:

Anónimo disse...

Há que distinguir entre os que falaram porque não aguentaram a tortura e os que se passaram para colaboradores da PIDE

Joana Lopes disse...

Tem toda a razão: tenho absoluta consciência dessa enorme diferença.

Anónimo disse...

Sinceramente não entendi.
Talvez seja porque em 1974 estava no pré-escolar. Ainda nem a minha filiação clubística estava definida (quanto mais a política, religiosa ou outras).
Mas tenho a mania que percebo alguma coisa sobre o então se passava no país.
E não percebo o que é que pretende dizer.
O meu problema está nos "fantasmas".
Quais são?
Pertencem aos que ficaram proscritos por se ter sabido que falaram?
Pertencem aos que os proscreveram?
Pertencem aos heróis que se supõe não terem aberto a boca (porque ninguém foi preso de imediato) e até se tornaram colaboradores?
Pertencem a outros?

Joana Lopes disse...

Respondendo a este último comentário,estava a pensar em dois tipos completamente diferentes de «fantasmas»: dos que falaram e dos que são vangloriados /se vangloriam por não terem falado.
Tive (em "off")várias reacções a este meu "post" e ainda pensei escrever uma adenda. Mas essas reacçõoes foram de tal modo divergentes e contraditórias que, para já, penso que é melhor ficar por aqui.