Dia de cão (DN, 15/7/2007)
«A reflexão imposta por lei é o produto directo e linear de uma transição democrática.(...) Mas, trinta e tal anos e dezenas de votações depois, a sua subsistência é a manifestação de um puro paternalismo de Estado.(...)
Ora, porque assim não é, o dia de reflexão torna-se estranho, enevoado e penoso de viver. Há uma bruma anómala à nossa volta e parece que nos movemos numa second life onde cada olhar é um espanto e cada passo uma aventura. De manhã, no café, primam pela ausência os amigos e vizinhos mais político-dependentes. E os demais avatares que pontuam a esplanada são seres desconhecidos, translúcidos e dotados de sorrisos lentos e mãos que mexem como num espaço sem gravidade.(...)
Recolho a casa. Onde não terei serenidade psicológica para ler, nem vertigem activista para escrever. Olharei bovinamente para a televisão, na esperança (sempre) vã de ver passar, por entre as pálpebras a meia haste, o relance de um candidato, a sombra de um eleitor ou, ao menos, o olhar cúmplice de um "pivot" de telejornal a transmitir-me qualquer coisa que se assemelhe, já não a solidariedade, mas pelo menos a um pouco de compreensão. Em vez disso, porém, serei bombardeado com desastres de viação, fogos frustrados, crimes passionais e patetices ditas "sociais" de "celebridades" que o não são. Com sorte, terei talvez o comendador Berardo a explicar mais uma iniciativa altruísta. Ou até um dirigente da oposição a dizer que exige ao poder o que não pode dar e um governante a dar-me aquilo que já é meu. Depois, terei minuciosas e por vezes ininteligíveis notícias sobre acontecimentos políticos, mas da Europa e do Mundo, onde a maldição não chega. E, logo que se tenha dado despacho a quase vinte minutos de electrodomésticos, automóveis, detergentes, telemóveis e supermercados, servir-me-ão os eventos do mundo admirável da época das transferências no futebol nacional.
Está escrito, vai ser assim. E, pelos vistos, até que a morte nos separe.»
«A reflexão imposta por lei é o produto directo e linear de uma transição democrática.(...) Mas, trinta e tal anos e dezenas de votações depois, a sua subsistência é a manifestação de um puro paternalismo de Estado.(...)
Ora, porque assim não é, o dia de reflexão torna-se estranho, enevoado e penoso de viver. Há uma bruma anómala à nossa volta e parece que nos movemos numa second life onde cada olhar é um espanto e cada passo uma aventura. De manhã, no café, primam pela ausência os amigos e vizinhos mais político-dependentes. E os demais avatares que pontuam a esplanada são seres desconhecidos, translúcidos e dotados de sorrisos lentos e mãos que mexem como num espaço sem gravidade.(...)
Recolho a casa. Onde não terei serenidade psicológica para ler, nem vertigem activista para escrever. Olharei bovinamente para a televisão, na esperança (sempre) vã de ver passar, por entre as pálpebras a meia haste, o relance de um candidato, a sombra de um eleitor ou, ao menos, o olhar cúmplice de um "pivot" de telejornal a transmitir-me qualquer coisa que se assemelhe, já não a solidariedade, mas pelo menos a um pouco de compreensão. Em vez disso, porém, serei bombardeado com desastres de viação, fogos frustrados, crimes passionais e patetices ditas "sociais" de "celebridades" que o não são. Com sorte, terei talvez o comendador Berardo a explicar mais uma iniciativa altruísta. Ou até um dirigente da oposição a dizer que exige ao poder o que não pode dar e um governante a dar-me aquilo que já é meu. Depois, terei minuciosas e por vezes ininteligíveis notícias sobre acontecimentos políticos, mas da Europa e do Mundo, onde a maldição não chega. E, logo que se tenha dado despacho a quase vinte minutos de electrodomésticos, automóveis, detergentes, telemóveis e supermercados, servir-me-ão os eventos do mundo admirável da época das transferências no futebol nacional.
Está escrito, vai ser assim. E, pelos vistos, até que a morte nos separe.»
2 comments:
Gosto muito do dia de reflexão (até gosto muito de reflexão todos os dias). É um dia em que a algazarra se cala, como por milagre.
Enquanto as campanhas abrirem, de facto, muito antes da data que a lei estabelece; enquanto as campanhas forem, no essencial, um estendal de dislates que pouco esclarece; devíamos era pedir uma semana de reflexão. O tempo necessário para fazer uma limpeza da mente e procurarmos, debaixo de algum tapete, a nossa consciência.
Original, como sempre... Mas, se as eleições fossem de hoje a 8 dias, pouca gente já se lembraria delas e haveria sempre de certo do «nosso povo» a perguntar a um entrevistador:
«Isso tem a ver com as 7 maravilhas, não é?»
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