Não fui a nenhuma sessão, não vi nada na televisão, li muito pouco de tudo o que foi escrito para assinalar o 10º aniversário da morte de José Cardoso Pires. Limitei-me a folhear uns tantos livros, alguns ainda com o preço escrito a lápis (40$00, 35$00), outros sem preço mas com dedicatória. E reli umas páginas de Alexandra Alfa.
Agora que a página está virada, e que ele ficará esquecido até uma próxima efeméride, venho pedir desculpa por dizer que também tive a sorte de o conhecer. Que, pelo mais puro dos acasos, almoçámos juntos, perto do Largo do Carmo, no dia 25 de Abril de 1974. Que se apanhavam grandes sustos nesta casa quando ele (que nunca se entendeu bem com automóveis) saía guiando o carro a 20 km à hora, depois de larguíssimas horas de conversa e de uns tantos copos de wkisky. Que se comia bom peixe num barracão em plena praia da Caparica («Tricana» de seu nome, se a memória não me trai).
Só mais um apontamento sobre um episódio passado há décadas. Na mais total das inconsciências, eu julgava então que, para um escritor como ele, a prosa fluía espontaneamente, «ao correr da pena» no sentido estrito da expressão. Daí a minha perplexidade quando, no andar da Costa onde se refugiava, ele ia escrevinhando coisas, aparentemente mais do que banais, que íamos dizendo numa conversa a três. Mostrou-me então longas tiras de papel onde punha palavras, pequenas frases e trocadilhos para mais tarde utilizar. Disse-me também que uma das maiores preocupações, nas sucessivas revisões que fazia dos seus textos, era tirar adjectivos. Mal eu sabia quanto esta conversa, que nunca esqueci, viria a ser-me útil muitos anos depois.
Não sei se estas vivências tiveram ou não uma influência decisiva para que ele seja, desde há muito, o meu autor português preferido. Mas sei, sim, que me dava muito jeito que ainda estivesse por cá. Dez anos de ausência é muito - é tempo a mais.
12 comments:
Cara Joana Lopes,
Agradeço o seu testemunho, de facto não é para qualquer um ter privado com Cardoso Pires, logo no dia do 25 de Abril.
Será que me podia satisfazer a curiosidade? Qual era a posição dele sobre a Igreja Católica? mormente sobre a hierarquia católica em Portugal (e as suas ligações ao antigo regime, etc.)?
João Alves
Muito obrigada pelas suas palavras.
A correr por absoluta falta de tempo.Não sei, não me lembro se JCP se considerava agnóstico ou ateu, mas nada tinha a ver com a Igreja. Nunca teve ligações ao antigo regime.
Joana, olá!
João Alves não perguntava seguramente se o JCP tinha ligações ao antigo regime! O Zé foi Catequista da Perseverança, sabia? Até ao dia em que os mistérios entravaram o avanço do seu conhecimento, esclarecendo apenas o que à sua fé dizia respeito: não a tinha. Dizia-se agnóstico, mas não acreditava nem um bocadinho na vida para além da morte.
A sua visão da hierarquia católica está mais que retratada no Dinossauro. "Padres", na boca dele, era pior que "comunistas" na boca dos padres. E no entanto, vários sacerdotes privaram com ele com regularidade, mesmo em sua casa, alguns dos quais nunca deixariam a Igreja. Monsenhor Botelho foi um deles. Dois homens que prezavam a inteligência e se sentiam estimulados pela diferença - duas pessoas que se recusavam a ver a vida como membros de claques de futebol - passavam fins de tarde e noites a fio à conversa sobre o mundo que os rodeava e sobre as ditaduras que os martirizavam.
E a Joana nem sabe o que perdeu: alguns dos eventos e rememorações foram muito bons e muito genuínos, coisa que nem sempre acontece nestas circunstâncias. Deixo apenas alguns exemplos de intervenções menos comentadas: Isabel Wolmar interpretou notavelmente duas colagens de romances do JCP (O Anjo Ancorado e Alexandra Alpha), na Casa da Comarca da Sertã; Gabriela Carvalho fez um percurso de Lisboa para a CML, com apontamentos da vida e obra do JCP, que foi uma lição de mestra (sou consumidora habitual deste tipo de eventos no estrangeiro e nunca vi nenhum tão rico e ao mesmo tempo tão sóbrio); e a Antena 2 passou uma série de entrevistas radiofónicas de várias épocas, lapidares para o conhecimento do ofício da escrita e do pensamento do escritor em muitas áreas sobre as quais se têm dito grandes tolices.
Eu, que do escritor perdi o pai, devo confessar que nenhuma das intervenções que acompanhei me pesou: não houve lamechices nem assisti a sessões para encher calendário. Pena não ter Além onde assistir, porque o Zé teria ficado certamente muito agradado.
A Universidade continua a ser o maior calcanhar de Aquiles na divulgação da vida e obra do escritor.
Ana Cardoso Pires
Ó Joana, se me dá licença, julgo que o comentador anterior, João Alves, referia-se às ligações da hierarquia católica ao antigo regime, não às do JCP com o Estado Novo, essas são bem conhecidas, um apanhava e o outro chegava-lhe a roupa ao pelo. E, sobre o tema que alimenta a curiosidade de João Alves, o "Dinossauro Excelentíssimo" não é esclarecedor?
João Tunes
Em tempo
Que eu tenha conhecimento, ainda vai haver as seguintes intervenções sobre a obra de JCP:
* dia 3 de Novembro - apresentação do livro "Histórias de Amor" com as marcas da Censura, por Rui Zink (Museu da Resistência, Lisboa)
* até 8 de Novembro - mostra de peças do espólio já passado pelo expurgo (Biblioteca Nacional, lisboa, sala de referência)
* até 20 de Novembro - exposição "Ilustrações da escrita" (Biblioteca Municipal José Cardoso Pires, Vila de Rei).
Já vi as exposições e são ambas magníficas, com selecção de peças de altíssima qualidade.
Ana Cardoso Pires
Peço deculpa a João ALves e agradeço à Ana e ao João Tunes: li mal o parêntesis do primeiro comentário, relacionando-o com JCP.
À Ana, quero também dizer que nada tenho, antes pelo contrário, contra as comemorações já passadas ou ainda projectadas - muitas foram anunciadas neste blogue. Simplesmnte, não me apeteceu ir, desta vez. São fases.
Saudades e abraços para a Edite também.
Para além do que a Ana Cardoso Pires já referiu, e o mais que não conheceremos, creio ser também de referir a exposição em curso na Hemeroteca Municipal com o título «José Cardoso Pires, cronista na imprensa».
Creio ser uma boa contribuição para abranger mais completamente a actividade de Cardoso Pires como homem de letras.
Efectivamente, queria perguntar o que João Tunes explicitou.
João Alves
E obrigado Ana Cardoso Pires, e Joana Lopes.
Cumprimentos para as duas.
Atenciosamente,
João Alves
uma das coisas mais estranhas é o silêncio que se faz, à volta de algumas pessoas de valor, depois de partiram, como se fosse um alivio...
senti isso em relação ao José Cardoso Pires, até numa coisa simples que até fica bem aos autarcas, a atribuição de ruas.
eles esquecem-se é que não dominam a história nem conseguem apagar as letras dos livros...
Vítor Dias,
Obrigada pela informação complementar.
Luis eme, Será possível que não haja nenhuma rua com o nome de JCP? Nunca tinha pensado nisso, mas, se assim é, só posso achar totalmente inconcebível. Parabéns pelo seu «Largo da Memória» que descobri há alguns dias - abençoados links!
existem várias artérias, Joana, pelo país fora.
falei disso porque houve uma época em que me pediram apoio biográfico sobre algumas pessoas de Almada e eu como sabia que o José Cardoso Pires escrevia os livros na Costa, sugeri o seu nome para uma artéria, dizeram-me que era uma boa sugestão (pouco tempo após o seu falecimento).
mas soube que ficou na gaveta, como passaram dez anos e o concelho tem crescido tanto em betão, pode ser que já tenha alguma rua para o Sobreda ou Charneca... mas não sei.
por estes lados também têm o bonito hábito de atribuirem nomes de ruas sem inaugurações ou avisos aos familiares...
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