15.2.10

O meu padrinho mulato




Uma troca de comentários a um post no ma-shamba levou-me hoje a recordações absolutamente inesperadas. Nasci e passei a infância em Lourenço Marques e os amigos, inseparáveis e praticamente únicos dos meus pais, eram Karel Pott e a mulher. Fui criada praticamente como irmã dos filhos deles.

De pai holandês e mãe negra, terá sido o primeiro mulato moçambicano a obter um diploma de curso superior. Era advogado, com escritório num belíssimo prédio na Baixa de Maputo - o Prédio Pott -, hoje em ruínas e ocupado por marginais, objecto de justas exigências para que seja recuperado. A tal ponto desfigurado que nem o reconheci quando voltei a Maputo, e o procurei em vão, há cerca de oito anos.

Com orgulho póstumo, descobri hoje que Karel Pott teve um conjunto de interesses e actividades que eu ignorava totalmente, por exemplo que foi um dos fundadores do jornal O Brado Africano e que, como presidente do Grémio Africano, protestou nos anos 30 porque, e passo a citar: «fechavam-se as escolas e dificultava-se o ingresso de alunos negros e mulatos nas existentes, jogando-os, se homens, na marginalidade, e, se mulheres, no "monturo ignóbil da prostituição". Falando com a experiência de quem havia representado – como atleta de corrida – Portugal nas Olimpíadas de Paris, em 1924, lamentava que em Lourenço Marques, "terra mais de pretos portugueses que de brancos portugueses", fechava-se a porta aos primeiros…».

Para a criança de menos de dez anos que era quando sai de Loureço Marques, ele foi apenas o padrinho extremamente carinhoso que vivia numa modesta moradia no Palmar, separada do areal por uma mísera estrada e umas urzes, onde eu passava quase sempre os fins-de-semana. Por vezes vinha visitá-lo a mãe que se recusava a dormir noutro sítio que não fosse uma simples esteira estendida no chão. Recordo-me também de os meus pais me explicarem que eles não iam connosco em férias à África do Sul porque o meu padrinho não seria bem tratado por ser mulato – é a minha primeira recordação de um pré-apartheid, que nunca esqueci porque me causou na altura a maior das perplexidades.

E, com tudo isto, julgo que percebi esta tarde mais claramente porque me irritei tanto com sofridíssimas narrativas que tanto sucesso tiveram recentemente aqui pelo hemisfério Norte. A teclar num computador e sem precisar de um divã.

P.S. -Na foto (tirada «a caminho da Namaacha», como está indicado no verso), sobretudo para leitores de Moçambique: Karel Pott está ao meio comigo ao colo, a outra criança é a filha, Suzy Pott. A mulher, Elvira, está em primeiro plano, à esquerda.

12 comments:

jpt disse...

O texto jornalístico sobre o prédio Pott tem algumas incorrecções no que respeita às intenções havidas para a sua reabilitação, ainda que o texto do jornal Verdade seja um pouco dúbio ("o nosso governo" será com toda a certeza o moçambicano - e nunca ouvi dizer que o governo de Maputo tivesse como intenção [ou pelouro] a construção de um centro cultural luso-moçambicano em Maputo - quanto muito em Lisboa ...]. Se entendermos a frase como um lapso linguístico de um redactor português também é incorrecto, nunca ouve um plano estatal português de ali fazer um centro cultural (algumas pessoas é que "acham que devia haver ...")

Que eu saiba - mas também apenas de ouvir falar - em meados da década passada houve um projecto, no sentido de intenções, do grupo BCP de aí fazer a sede do banco que entao constituiu em Moçambique (o BIM). Aliás fazendo-se valer da boa experiência que tem em reabilitar edificios históricos,como o demonstra a sua sede da Baixa lisboeta - pese embora a enorme diferença quanto aos edificios de que se fala. Na altura houve um movimento de resistência face a esse ideia, que culminou na realização de actividades culturais a céu aberto no edifício, intentando lançar as bases para inflexão no sentido de criação ali de um centro cultural de características nacionais.

Mas assim ficou. O resto da história prende-se, obviamente, com o historial imobiliário maputense. Presumo que o prédio tenha posse particular e que se espere a iniciativa de algum pujante força económica para construir em altura, e correspondente autorização. O que não tardará, se atendermos à explosão de construção em Maputo no último ano e pouco.

Quanto ao resto - Karel Pott é, realmente, uma referÊncia biográfica na complexidade sociológica do velho Lourenço Marques. Eu talvez não tenha razão mas parte dos obstáculos à transformação rápida do edifício num conglemerado a la south africa será também o peso simbólico do nome que carrega, e não tanto o seu valor arquitéctonico ou da mancha urbanística em que se insere - a qual, aliás, começou a ser desmontada nos finais da década de 60 com alguns edifícios fronteiros descaracterizadores da Baixa.

Finalmente, e vai com um sorriso: não diga mal das memórias, que ainda a dizem uma reaccionária saudosista do Império. Qu'isto de bloguista editada em Coimbra pelos bem-pensantes tem que ser respeitada, e o respeitinho é muito bonito. Principalmente quando é libertário.

Joana Lopes disse...

Obrigada pelos esclarecimentos quanto ao prédio.

Quanto ao último parágrafo, tenho as costas largas...

Abraço
(Logo ou amanhã, ponho algo sobre a Polana)

jpt disse...

(desculpe-me a deriva pela "sociologia da cultura" que nós no ma-schamba não chegámos a aflorar aquando das polémicas recentes - mas talvez devessemos ter entrado por aí, que o ridículo paroquial foi ostensivo e pungente)

Rui Bebiano disse...

Bela vivência, Joana. Só não concordo, como calculas, com a apreciação da outra vivência. Cada caso é um caso e para alguns as coisas complicam-se nas melhores situações...

Joana Lopes disse...

Certamente, Rui, mas eu não fiz aqui «apreciações» sobre a outra vivência: disse apenas que estas recordações da minha me tinham feito perceber melhor a minha irritação com a leitura do livro em questão.

Irritação porque, tenha sido ou não intenção da autora, ele «apareceu» não apenas como um testemunho de vida mas como a descrição de uma situação generalizada - e como tal foi louvado por muitas críticas politicamente correctas. Não estou a insinuar que tenha sido o teu caso, obviamente.

septuagenário disse...

Os mulatos afro-lusos, têm um passado histórico bastante atribulado.

Mas o futuro histórico, infelizmente, parece ser pior, pois que estão desaparecendo das terras de nascimento.

Por uma questão simples: Cada vez é mais notória nas ex-colónias, a ideia de que um "higiénico apartheid", era melhor de que uma colonização de "tudo à molhada" à-lá-portuguesa.

Como tal, a mestiçagem é olhada e marcada negativamente, pelos discursos oficiais.

A vida é assim!

Jorge Conceição disse...

Falando apenas de imóveis e não de vivências: é chocante, para olhos europeus, de pessoas que ultrapassaram o patamar das necessidades básicas e se situam já num de observação cultural/artística/histórica/etc., verem a degradação que determinadas referências do seu passado se foram degradando. Eu, claro, também me situo neste patamar de vida. Chocam-me as imagens relativamente recentes (de 2007) que tive a possibilidade de ver do Grande Hotel da Beira, por exemplo ou da Ilha de Moçambique (com degradação, apesar de tudo, de menor grau, embora de maior extensão obviamente). No Grande Hotel da Beira viviam então (e talvez ainda vivam) cerca de 2500 pessoas, em condições pouco diferentes das citadas para o prédio Pott. A quase totalidade das janelas estavam partidas, oferecendo um enorme risco para as crianças que ali coabitam com os adultos. Mas surgem-nos pensamentos, análises, contraditórios. Foi um edifício marcante na idade da Beira que perdeu a sua áurea, se degradou profundamente. Foi um edifício luxuoso, para ocupantes afortunados na vida, que foi destruído. É um edifício que se converteu em albergue de pessoas swem casa. Talvez até fosse a melhor solução transitória para alojar pessoas sem haveres, sem outro tecto. Mas hoje é mesmo um foco anti-sanitário, anti-social. O que talvez tivesse a sua justificação como solução de emergência, passou a ser um problema premente. Mais do que a necessidade de reabilitação do imóvel, passou a existir a necessidade de reabilitação social dos seus ocupantes!

NG disse...

"E, com tudo isto, julgo que percebi esta tarde mais claramente porque me irritei tanto com sofridíssimas narrativas que tanto sucesso tiveram recentemente aqui pelo hemisfério Norte"

Também fiquei irritado com essas narrativas, Joana. Pela viagem que fiz há algum tempo a Moçambique, pelo género de pessoas que conheço que lá viveram, e pela extensão das prateleiras da biblioteca da minha faculdade ocupadas com livros que registam o interesse pelo conhecimento e a investigação que lá se fazia nos anos 50 a 70, fico sem paciência para clichês simplistas borrados a racismo e exploração indígena.

Joana Lopes disse...

Nuno,
Sem qualquer ironia: fico contente por, pelo menos uma vez, estarmos de acordo... :-)

Anathelion disse...

O predio Pott consegue ser ainda hoje e em ruinas um edificio bonito, em minha opiniao. Nao me parece que propriedade seja privada. Em 1994 colaborei na organizacao de uma exposicao de fotografias nas ruinas do predio e os nossos contactos foram todos feitos com o conselho municipal. E possivel que tenha sido (re)-privatizado (?) depois de 94...

Jorge Conceição disse...

Só uma pequena nota deslocada no tempo: Estou a ler um livro saído há dias "Nacionalistas de Moçambique", de Dalila Mateus e Álvaro Mateus, onde o Prédio Pott é referido pelas reuniões efectuadas no gabinete do advogado Dr. Henrique Baião pelo Movimento dos Jovens Democratas de Moçambique, nos anos 40 do século XX.

Joana Lopes disse...

Obrigada, Jorge, entretanto, também tenho encontrado várias referências ao prédio Pott, ao Brado Africano, etc.