5.3.10

«Isto só vai com um milagre»


«O sol da tarde resplandece no Castelo impassível, cor de oca e de ferrugem, onde flutua sempre uma bandeira preguiçosa. Olhando de fora esta multidão coloidal que adere às esquinas e às fachadas, num calmo exterior de alameda provinciana, ninguém diria que por baixo disto corre um tumulto de lava que pode arrastar-nos e subverter-nos a todos. Uma tropa de ingleses carregados de sacos de golfe passa a caminho do Palace, e olha com espanto esta gente morena e apoquentada que parece tomar a vida a sério ou esperar sempre um milagre que a salve, outras Índias, Brasis, um novo Dom Sebastião ou um terramoto.

A atmosfera, com efeito, não é a dos bons tempos. Não há os gritos, os vivas e morras, a esperança, os pugilatos de há poucos anos. Não há? Isso é o que nós veremos. Há porém expectativa, ansiedade. Não se fala de bombas, afinal o operariado está quieto. Chega a ser suspeito um silêncio assim. ‘Agora, a Campo de Ourique houve coisa!’ Crescem de novo orelhas a escutar: ‘Um grupo de populares manifestou à porta do Batalhão Ferroviário!’ Mas quem são eles, que querem eles?

No terraço dum café-bilhar sujeitos pacatos esforçam-se por consumir em paz a primeira limonada, respirar as brisas da Primavera incipiente, olhando de cima da enxurrada. Outros passam cá em baixo, magistrais, livros debaixo do braço, acenando a cabeça, discutindo o seu vient-de-paraître: são letrados, intelectuais, sábios da letra de forma, alheios ao século, interessados no umbigo do Universo intemporal. O seu reino não é deste mundo.

(…) Há na imensa praça um perpétuo vaivém, os grupos fazem-se e desfazem-se, reconstituem-se mais longe, numa agitação de folhas secas ao vento, incompreensíveis para o leigo e o forasteiro. ‘Mas esperava-se que o governo caísse!’ (Não caiu.) ‘Isto só vai com um milagre!’ murmurou um descrente. Como se nada mais houvesse neste mundo, aquém ou além-fronteiras, só se fala de crise, dissolução, défice, poder, recomposição. E a pergunta elástica lá vai saltando de boca em boca: ‘Ukèkiá? Kèkiá?’»

José Rodrigues Miguéis, O Milagre segundo Salomé.

(Texto divulgado por M. Manuela Cruzeiro em Caminhos da Memória)

0 comments: