Aung San Suu Kyi faz hoje 65 anos. Continua com residência fixa na sua casa de Rangun, que nem de longe pode ser vista porque a rua que lhe dá acesso está barrada ao trânsito – testemunhei-o quando lá estive, há menos de um ano.
Apesar de todos os apelos, incluindo um de Obama feito ontem, a Junta Militar que governa o país não a liberta. Simbólica e silenciosamente, os seus seguidores plantarão hoje 20.000 árvores espalhadas por todo o país, com a convicção de que a mensagem política da sua líder crescerá como as plantas.
Dezenas de milhares de exilados brimaneses espalhados pelo mundo celebram hoje o 65º aniversário de Aung - a «senhora», como carinhosamente lhe chamam – com festejos e muitos protestos. No Facebook, várias Causas e páginas se associam, com um sem número de mensagens. É o mínimo – e infelizmente o máximo – que pode ser feito.
Entretanto, haverá eleições em Outubro - «nem livres, nem limpas, nem democráticas» -,mas o partido liderado por Aung, desde 1988, não concorrerá (dissolveu-se, mesmo), já que, ao contrário de muitas expectativas, a extensão da pena de residência fixa a que ela está condenada não foi reduzida a tempo de poder participar na campanha eleitoral.
Estive nesse terrível país, que terá ficado gravado na memória de muitos pela colorida revolta dos monges em 2007, e onde há mais de 2.000 presos políticos, em Novembro de 2009. Retomo algumas passagens do que então escrevi:
Dez dias de turismo são menos do que pouco para conhecer seja o que for, mas o suficiente para se perceber que, na Birmânia, se está perante um caso especial.
Ao contrário do que acontece em países vizinhos como o Vietname, o Cambodja ou o Laos, a ditadura aqui nem sequer é ditada por uma qualquer ideologia, mas reduz-se pura e simplesmente a um poder férreo de militares sobre 56 milhões de pessoas, tendo como único objectivo o seu próprio enriquecimento e o luxo em que vivem as famílias e os respectivos amigos - à custa de uma corrupção generalizada e sem vergonha, enquanto a esmagadora maioria do povo vive num estado de pobreza extrema, visível em todos os detalhes, sem empregos, em cidades mais do que degradadas e desordenadas, onde nem sequer se vêem os enxames de motoretas já célebres no Sudoeste asiático porque uma simples bicicleta é quase um luxo. Tudo isto num país riquíssimo em recursos naturais (gás, madeiras de várias espécies, pedras preciosas de primeira qualidade, etc., etc.) que são vendidos para todo o mundo porque é evidente que o boicote dos Estados não atinge as algibeiras dos comerciantes.
Em 2005, a capital política passou a ser Nay Pyi Taw, onde está a ser construído um misterioso conjunto de túneis com a ajuda da Coreia do Norte (um dos três grandes amigos do país, juntamente com a China e com a Rússia). A sua utilização futura dá lugar a um sem número de especulações.
Haverá eleições em 2010, mas ninguém parece ter qualquer tipo de esperança quanto ao desfecho das mesmas. Mesmo que viessem a libertar Aung San Suu Kyi («a senhora», como é sempre carinhosamente referida), antes da data prevista e a tempo de concorrer, e mesmo na hipótese praticamente absurda de ela as vencer, nunca poderia vir a estar à frente do país, já que a constituição foi alterada e obriga agora a que o chefe supremo da nação seja um militar. Ninguém se atreve a prever quando e como será o fim de um regime terrível que dura desde 1988 e que oprime milhões de pessoas que exibem um misto de resignação, grande dignidade e amabilidade fora do comum.
Tudo isto feito «em nome» do budismo que os políticos dizem professar e protegem de facto, que mais não seja porque a conservação dos pagodes (templos e estupas) parece ser a única realidade digna de atenção – e de dinheiro.
Trata-se de um país com uma história complexa, como o é a de todo o Sudoeste Asiático, recheada de conflitos com vizinhos e guerras com colonizadores. Os portugueses também por lá andaram, bem como os franceses, mas foi a colonização britânica que mais marcou - depois de duas guerras birmano-inglesas no século XIX e de vários episódios durante a II Guerra Mundial (onde teve já um papel determinante Aung San, pai de d'Aung San Suu Kyi), o país acabou por proclamar a independência em 1943. Em 1962, viu-se governado por uma primeira ditadura militar, com uma versão de socialismo que o levou rapidamente à pobreza.
1988 foi um ano decisivo, com grandes manifestações contra o regime, que resultaram numa promessa de eleições livres. Aung San Suu Kyi regressou ao país, fundou a «Liga nacional para a democracia» e obteve uma vitória estrondosa nas ditas eleições que acabaram por se realizar em 1990. Mas os militares recusaram a transferência do poder e mantiveram-na em residência fixa até 1995. Libertaram-na então mas durante pouco tempo já que, nos últimos vinte anos, «a senhora», como é carinhosamente tratada pelos seus conterrâneos, Prémio Nobel da Paz em 1991, esteve detida ou com restrições de movimentação durante catorze.
Presa pela última vez em Maio de 2007, está neste momento a cumprir um acréscimo de pena de residência fixa durante dezoito meses, havendo no entanto uma muito leve esperança de que seja liberta a tempo de participar na campanha para as eleições que terão lugar em 2010, mesmo que sem esperanças de vitória. (E mesmo que esta viesse a acontecer, Aung nunca poderia assumir a chefia do governo, já que uma alteração à Constituição estabelece agora que o cargo seja ocupado obrigatoriamente por um militar.)
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3 comments:
Joana,
Não sei que idade tens, mas vejo com gosto que, ao afirmar "a ditadura aqui nem sequer é ditada por uma qualquer ideologia, mas reduz-se pura e simplesmente a um poder férreo de xxxxxxxx sobre yy milhões de pessoas, tendo como único objectivo o seu próprio enriquecimento e o luxo em que vivem as famílias e os respectivos amigos", colocas a hipótese de uma ditadura poder ser diferente disso, o que faz de ti uma "young at heart"...
Eu, que acho que sou um bocado mais novo, há muitos anos que perdi essa ilusão...
Há diferenças (o que não justifica qualquer ditadura, seja ela qual for): pelo que foi dito, e pelo que li, na Birmânia a corrupção da elite militar dirigente atinge um grau absolutamente escandaloso, que nem sequer é escondido, que não existiu noutros países.
Só para dar um exemplo, eu nunca escreveria que Fidel tomou o poder e o exerceu durante décadas «tendo como único objectivo o seu próprio enriquecimento e o luxo em que vivem as famílias e os respectivos amigos».
Ou, se preferires: Salazar...
Point taken...
Mas há outros factores, que não apenas conduzir Ferraris nos pátios do palácio, ou beber champanhe francês à refeição, ou mandar as mulheres ao barbeiro a Paris, que podem ser considerados factores de enriquecimento e luxo pelos ditadores e seus amigos... a sucessão dinástica pode ser um exemplo de "perk" que prezem tanto como outros prezam o consumo de bens de luxo.
Isto aplica-se ao Fidel, mas ainda não explica o Salazar, convenhamos.
Point taken, portanto...
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