11.7.10

Contra a repressão de alguns


Recebi há algum tempo o texto que abaixo transcrevo e não o publiquei por já estar então divulgado nalguma blogosfera.

Mas, por motivos que não vêm agora ao caso, conheci há três dias um dos protagonistas dos factos relatados – Jakilson Pereira (Hezbollah) – e ouvi várias outras histórias semelhantes a esta.

Quando alguns políticos e muitos jornalistas parecem estar interessados em criar novas versões do Arrastão que nunca existiu, é tempo de olhar para a repressão discriminatória de que são vítimas grupos específicos da nossa população.

Este tema passará a ser objecto de uma atenção especial neste blogue.


Hezbollah e LBC agredidos pela PSP 

Às 4:55 horas da madrugada de domingo 14 de Junho, no Parque Central da Amadora, um grupo de jovens, entre os quais Jakilson Pereira, 26 anos, licenciado em Educação Social, desempregado e candidato a bolsa de investigação, dirigiam-se para a Mina, Amadora.

Jakilson, que também é rapper e é mais conhecido como Hezbollah, agachou-se para apertar os atacadores dos ténis. De repente sentiu um automóvel aproximar-se dele. Levantou a cabeça e viu um homem com uma arma apontada na sua direcção que gritou “Caralho!” Assustado, Hezbollah correu na direcção do seu amigo Flávio Almada, 27 anos, estudante finalista do curso de Tradução da Universidade Lusófona, também rapper e mais conhecido como LBC, mediador sociocultural na Escola Intercultural das Profissões e do Desporto da Reboleira e formador musical de jovens inseridos no Projecto Escolhas do Moinho da Juventude e da Comissão de Moradores da Cova da Moura. LBC disse ao agressor: “Ele está desarmado!”, referindo-se ao seu amigo Hezbollah. Nesse momento, o homem disparou um tiro na direcção de Hezbollah. O homem estava fardado, era da PSP e tinha sido transportado para o local por um automóvel da PSP.

Hezbollah continuou a fugir e foi esconder-se por trás de um automóvel junto à Estação dos Correios, observando a progressão do agente da PSP que o procura de arma na mão. O agente detecta-o e corre na sua direcção. Sai outro agente do automóvel e ambos cercam Hezbollah. Agarrando-o sob ameaça da arma, começaram a pontapeá-lo. Chega um automóvel Volkswagen Golf preto, com dois polícias à paisana. Enquanto um dos agentes fardados algema Hezbollah, obrigando-o a deitar-se de barriga no chão, o outro polícia fardado volta a dar-lhe pontapés. Um dos agentes à paisana exclama: “Deixa o rapaz!”

Entretanto LBC tinha-se aproximado para tentar socorrer o amigo. Os polícias fardados agarram-no, deitam-no ao chão e algemam-no, pontapeam-no e depois metem-lhe um pé sobre a cabeça e tiram-lhe a carteira e o telemóvel.

Levam-nos – cada um dos detidos no seu automóvel – para a Esquadra da Mina, na Avenida Movimento das Forças Armadas 14. Aí aparece o agente Monteiro e pergunta a Hezbollah, agarrado pelos braços por dois outros agentes para o manterem sentado numa cadeira: “Estás preparado?” e começa a dar-lhe socos e joelhadas na barriga. Hezbollah vomitou em consequência dos dois primeiros socos. LBC também é sovado. Um dos agentes comenta a certa altura: “Aqui estão os dois gajos. Qual de vocês é que tem um caso com a polícia?” Hezzbollah foi absolvido há cerca de um mês da acusação de ter partido dois dedos a um polícia, quando na realidade o que aconteceu foi que, ao voltar para casa à noite, foi cercado por vários polícias, que o deixaram inanimado, sem sapatos e sem casaco, num terreno vago, depois de barbaramente espancado, a ponto de lhe partirem a cana do nariz.

Metem-nos de novo no automóvel e levam-nos para a Esquadra do Casal da Boba, na Amadora. Depois de os encostarem a uma parede, o agente Nunes dessa esquadra dá um forte pontapé no estômago de Hezbollah, enquanto outros agentes o seguram e batem para o impedir de se encolher a proteger-se da agressão. Um dos polícias comenta: “Qualquer dia vão encontrar o teu corpo morto na mata de Monsanto”. Tiram fotografias aos dois detidos. LBC é colocado ao lado de Hezbollah e um dos polícias acusa LBC de ter em seu poder um telemóvel roubado. Ele nega e é-lhe devolvido o telemóvel, que lhe tinha sido confiscado e levado para outra sala, depois de verem as mensagens e chamadas.

Foram levados de novo para a Esquadra da Mina. Lá chegados, os detidos repararam na presença do rapaz e da rapariga com quem Hezbollah e LBC tinham trocado palavras que provocaram uma cena de socos entre Hezbollah e o rapaz, na Estação da Amadora. 

Repete-se a cena de Hezbollah, ainda algemado, ser agarrado pelos ombros e braços e agredidos a soco no estômago pelo agente Monteiro. LBC interpela-os dizendo “Porque é que estão a fazer isso?” e foi imediatamente agredido a pontapé pelos dois agentes que o enquadravam.

O agente diz-lhe que vai ter de limpar o vomitado com a boca. Hezbollah recusa-se e o agente Monteiro e o agente Ferreira – que tinha tirado o crachá – Insistem: “Vais limpar, vais limpar” e, segurando-o, lançaram-no por cima do vómito e arrastaram-no para trás e para a frente, como se fosse uma esfregona, até o vómito ensopar por completo as calças, o casaco. Num canto ainda ficou um resto de vómito. O agente Monteiro pega no boné de Hezbollah e lança-o sobre esse canto e, colocando-lhe o pé em cima, esfrega-o sobre o vomitado. O agente Monteiro deixou de lhe dar socos mas passou a dar-lhe pontapés, chamando-lhe “porco”.

Os detidos ficaram ali até às onze horas e tal da manhã, altura em que lhes passaram um papel para comparecerem no Tribunal de Alfragide às 10h do dia 14 de Junho e os deixaram sair da esquadra, depois de, pela primeira vez, os desalgemarem. O documento refere-os como arguidos e acusa-os de “agressão à integridade física”, sem referir a quem.

LBC e Hezbollah passaram todo o dia de domingo nas suas respectivas casas (Reboleira e Amadora respectivamente).

Na 2ª feira apresentaram-se ao tribunal, onde encontraram os agentes Monteiro e o outro torturador, o agente Ferreira, ambos à civil. Também estavam presentes o rapaz e a rapariga com quem Hezbollah tinha trocado palavras e socos na Estação da Amadora. Os polícias deram-lhes dois chocolates Twitters. Perante isto, LBC e Hezbollah disseram no seu depoimento que um amigo deles que estava presente naquele episódio e tentara acalmar os ânimos devia ser chamado para o seu testemunho ser confrontado com o deles. A funcionária do tribunal perguntou a Hezbollah se queria um advogado oficioso e ele recusou,. A funcionária tomou nota de toda a ocorrência, e deu a ler o depoimento aos detidos, que assinaram.

O caso vai ser investigado. A funcionária recomendou a Hezbollah que não lavasse as roupas sujas com vómito.

Neste momento Hezbollah e LBC não têm advogado que os defenda e sabem que, se nada for feito para dar publicidade a esta situação, continuarão a ser alvo da brutalidade policial. Foi o que aconteceu com Tony da Bela Vista, Teti, torturado até morrer de hemorragia interna, Angoi, morto com dois tiros nas costas, PTB abatido dentro do carro, Snake, assassinado com um tiro nas costas quando conduzia o seu automóvel, Corvo, abatido com um tiro na cabeça, Kuku, morto aos 14 anos com um tiro a 12 cm da cabeça, Célé, morto com 62 balas, etc.

Ana Barradas
19/06/2010
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12 comments:

Anónimo disse...

o "arrastão" nunca existiu?
Paulo Freitas do Amaral, autarca de Oeiras, garante que "odos nós tomámos conhecimento" dele http://oeirasvinteeum.blogspot.com/2010/07/proposta-camaras-de-vigilancia-nos.html

Joana Lopes disse...

O que um autarca diz não consegue alterar a realidade. Viu até ao fim o documentário-resumo, de D. Andringa, que aqui «limkei»? Existe no Youtube, na íntegra, em quatro partes.
O não-Arrastão de 2005 é hoje um verdadeiro case-study estudado até em universidades estrangeiras.

Anónimo disse...

vi sim. apenas citei o que o autarca garante, não disse que concordo com ele. é um eleito do PS, imagine!
mas isto tudo para demonstrar que ainda há quem continue a usar o dito "arrastão" para efeitos demagógicos

Joana Lopes disse...

Ah, claro. E continua a inventar-se pequenos Arrastões, como foi o caso em Cascais, ainda há poucos dias.

Luis Eme disse...

Joana, as coisas não são assim tão simples.

ontem assisti a uma cena digna de um filme.

estava no hall de entrada de um supermercado, quando vejo entrar meia duzia de miúdos, entre os 10 e os 12 anos. os funcionarios ficaram logo alerta e tentaram seguir os seus passos. eles lá andaram de corredor em corredor, até que, descontentes com a vigilância acabaram por sair, não sem antes empurrarem uma funcionária que estava à porta e lhes deu um boa tarde. chamaram-lhes nomes e um deles cuspiu-lhe na cara, antes de baterem em retirada.

em relação ao caso que relata, a policia não apareceu ali por acaso, e provavelmente os dois rapazolas estavam no lugar errado, a hora errada.

além disso ele fez a pior coisa que se pode fazer, fugir, como se fosse culpado de algo.

por outro lado (embora seja uma forma extremamente errada de funcionar), alguns polícias preferem "partir" para a agressão, porque sabem que os juizes os libertam, mal eles caem nos tribunais...)

é extremamente dificil lidar com todas estas situações. se a policia é educada, são demasiado brandos. se é dura, são umas bestas...

Joana Lopes disse...

Luís, claro que as coisas não são simples e, por isso mesmo, é que devem ser discutidas e divulgadas.

Conta uma história como há mil, ainda por cima com crianças, outras mil diferentes e em sentido contrário podiam ser relatadas.

Sintomático, desculpe-me que lhe diga, é referir-se, a priori, às duas pessoas em questão como «rapazolas». Como digo no texto, conheci um deles e «rapazola» é um termo absolutamente inadequado para o caracterizar: não é nenhuma criança, é licenciado (como refere a Ana B.), pai de família, vive numa casa, onde estive, absolutamente normal.

No caso relatado, pode ter a certeza de uma coisa: se fosse branco, nada se teria passado do mesmo modo. Mas não é.

Manuel Vilarinho Pires disse...

Boa noite, Joana

Li este "post" hoje de manhã na Marinha Grande e, chegado a esta hora, já em casa, tenho a dar-te a triste notícia de que me estragou o dia.
Porque é uma história abjecta que me invadiu durante todo o dia e para a qual não encontro solução simples...

Primeiro porque, a serem verdade os factos relatados e fidedigno o relato, estamos perante um crime abjecto cometido por uma série de agentes da polícia.

Segundo porque só conhecemos os factos através de relatos de testemunhas (tanto este relato de amigos das vítimas, como o dos agentes) e não termos meios de saber o que neles é objectivo ou subjectivo ou mentira.

Terceiro, porque podemos estar perante um caso de generalização monstruosa que, neste caso específico, pode ser injusta: é preto, usa roupa deste tipo ou penteado daquele, é certamente criminoso.

Quarto, porque podemos estar perante outro caso de generalização mosntruosa que também pode ser igualmente injusta: é polícia, vê um preto de cujo aspecto não gosta e bate-lhe, prende-o e tortura-o.

Quinto, porque aquilo que a polícia deve combater, e aquilo que, provavelmente por preconceito, os agressores terão atribuído às vítimas das agressões, é um problema muito sério que condiciona a liberdade de todos: a insegurança.

O problema é pois muito complexo, e multifacetado e a busca de uma solução é prejudicada por frequentemente ser analizado por uma óptica enviezada, por zarolhos que só conseguem olhar para um lado.
E tem a agravante de, conhecendo o que conheço deles, não estar convicto de que valeria a pena ouvir o que têm a dizer sobre ele pessoas como o Sócrates, ou o Passos Coelho, ou o Cavaco, ou o Paulo Portas, ou o Louçã ou o Jerónimo (por outro lado, tenho uma certa curiosidade em saber o que poderia dizer sobre isto o Adriano Moreira, para dar um exemplo)...

Por isto tudo, estou cem por cento de acordo que passes a trazer este assunto à discussão pública, mesmo sabendo que muitas das reacções que provocará poderão correr o risco de ser parcelares e, portanto, inúteis para ir encontrando uma solução...

Joana Lopes disse...

Excelente contribuição, Manel, porque o problema é mesmo complexo.
Neste caso concreto: estive ao mesmo tempo, na passada 5ªf, com uma das vítimas e com quem escreveu este texto. Utilizei-o porque já estava escrito, mas ouvi, com mais pormenores ainda, a história contada pelo próprio (que neste momento já tem um excelente advogado, btw).

Todas as generalizações são péssimas, mas há muitos casos de descriminação, mesmo que não estritamente policial, que depois desencadeiam violência. Amanhã ou depois contarei um exemplo: nos comboios, se és preto e não usas gravata, é provável que sejas o único a quem é pedido o passe...

São disse...

Joana,
isto é absolutamente chocante. Mas, infelizmente,creio que, no que diz respeito ao racismo, não só evoluimos muito pouco, como me parece que estamos a regredir. É um muito mau sinal dos tempos que vamos vivendo.Triste, muito triste.

Manuel Vilarinho Pires disse...

Joana,

Depois continuamos a falar de coisas sérias, mas vou-te contar uma história de passes.
Quando andava no Técnico tive um colega, o Carlos, trabalhador-estudante que não escondia que em miúdo tinha sido um "miúdo das barracas".
A tese do Mestrado da Isaura, sobre sucesso escolar em meios onde o insucesso seria mais expectável, foi essencialmente sobre ele.
Eu morava na Amadora e ele no Cacém, tinhamos aulas à noite e regressávamos a casa de comboio que apanhávamos nos Restauradores.
Uma noite, o comboio não tinha luzes, mas mesmo assim andava lá o revisor, no escuro do túnel do Rossio, a pedir os bilhetes e os passes.
Quando passou por nós, o Carlos, ainda um miúdo, ainda que grande e já pai de família, das barracas, mostrou-lhe o BI em vez do passe... e o revisor agradeceu e prosseguiu, satisfeito pelo dever cumprido, mesmo sem luz...

Esse tipo de descriminação é óbvio, e cometido a toda a hora e em todo o lugar...
Se entrares num Hospital público de gravata e queixo erguido a falar ao telemóvel, és capaz de chegar a entrar no bloco operatório sem ninguém te perguntar nada, mas se te dirigires em aflição ao porteiro, só te deixa entrar à hora da visita, se houver ficha, se passares num interrogatório para determinar se és familiar do doente, e nem pensar em telemóvel... Se o porteiro for comuna, nem o Cavaco deixa entrar sem mostrar o BI...

Se tiveres nas tuas relações jovens advogados a fazer o estágio, que normalmente são nomeados para "oficiosas" a pequenos delinquentes, vais saber que a pancada na esquadra faz parte do processo habitual de tratamento destes pequenos clientes do sistema.
E quase todos os Ministros da Justiça e da Administração Interna da democracia portuguesa foram advogados e antes estagiários...

Eu sou capaz de supor, podendo errar, que o nosso sistema judicial (a lei, especifico melhor) é brando demais, e o sistema policial compensa isso com dureza excessiva; só que nunca se compensa um erro com outro erro, eles não se anulam, somam-se, porque dar cacetada num inocente não compensa a libertação de um criminoso...

Infelizmente, os advogados que fizeram algum trabalho notável neste domínio parece terem preferido virar-se para a advocacia de negócios e, entre Conselhos Fiscais e lugares não executivos nos Conselhos de Administração, não têm tempo para estes pretinhos.

Agora, nunca se chegará a lado nenhum na denúncia dos excessos de violência policial sem começar por reconhecer que os polícias são os soldados que andam a combater por nós e pela nossa segurança, sem a qual não somos realmente livres, que nessa guerra são eles próprios vítimas de violência, por vezes mortal, e que há que distinguir e respeitar os polícias decentes, e condenar os "hooligans", sendo certo que haverá tanto de uns como de outros.
E estou convicto que cada político que censura ou condena um polícia como o que abateu o sequestrador no assalto ao BES de Campolide e salvou a vida das vítimas, acaba por erigir uma trincheira onde se branqueam crimes gratuitos como estes...

Joana Lopes disse...

Não discordo absolutamente de nada e nunca me verás bater palmas a quem exercer violência gratuita sobre um polícia.

A diferença está talvez (julgo) no seguinte: um polícia agredido tem defesa jurídica assegurada contra o agressor, o que já não acontece em situações como a aqui descrita.Por isso, uma das primeiras prioridades é que haja um grupo de advogados disposto a a processar quem assim agride. Mesmo que as questões levem anos a ser julgadas. Não se pode desistir de um estado de direito.

Manuel Vilarinho Pires disse...

Um polícia morto em serviço não tem defesa de espécie nenhuma... e não sei se à família é concedida, pelo menos, uma compensação material condigna... e duvido que o seja. Isto a somar à potencial decepção de vir a ver os assassinos condenados a penas judiciais irrisórias, porque a lei, por vezes, pode ser branda...

Suponho que em situações como a que é descrita aqui o problema jurídico é o da obtenção de prova, porque só há testemunhos, provavelmente com versões contraditórias (isto se o agredido sobrevive) do agredido e dos agressores, e estes costumam ser vários, o que significa testemunho mais sustentado.
Não sei se os legisladores democráticos esgotaram todos os recursos legislativos que permitiriam obviar essa dificuldade... a mim parece-me que a obrigatoriedade incontornável de captação de imagem e/ou som nas patrulhas na rua e, essencialmente, em todos os locais dentro das esquadras, daria um bom contributo para esclarecer as circunstâncias em que ocorrem as agressões, e nunca ouvi falar de nenhuma iniciativa legal desta natureza...