1.8.10

Os ícones também se abatem


Todos o conhecemos bem, sem nunca lhe termos conhecido a cara. Vimo-lo milhares de vezes, mas apenas de costas a enfrentar um tanque na Praça Tiananmen.

Li Lu tem hoje tem 44 anos e volta a ser notícia porque poderá ser nomeado em breve CEO da gigantesca Berkshire Hathaway.

Nasceu com a Revolução Cultural, em 1966, numa família de intelectuais. O avô estudou nos Estados Unidos, na universidade que ele próprio veio a frequentar setenta anos mais tarde, e morreu numa prisão. O pai já se formou em Moscovo e tanto ele como a mãe foram enviados para campos de trabalho.

Braço direito de Chai Ling durante a revolta estudantil de 1989, Li Lu acabou por ficar para a história como o seu principal símbolo. Depois dos acontecimentos de Tiananmen, conseguiu esconder-se e fugir para França, seguiu mais tarde para os Estados Unidos, estudou Economia e Direito na Columbia University, fez carreira no mundo da finança.

Regressa agora mas a uma outra ribalta. Desilusão e espanto porque «traiu» e não anda hoje pelo mundo a defender «causas», por exemplo os direitos humanos violados pelo regime chinês? Não, dizem alguns: há uma coerência entre o falhanço da tentativa de Tiananmen e a evolução de uma geração que cresceu num universo de «língua de pau», em que as palavras perderam sentido e geraram cinismo e talento de mentir para sobreviver. Escandaloso, diz uma grande parte da diáspora chinesa, que não se conforma com o estilo de vida e o estatuto dos seus heróis, Li Lu e Chai Ling, ela também com uma carreira de sucesso nos Estados Unidos: «a transformação de jovens patriotas idealistas em americanos descontraídos é demasiado transparente e oportunista», eles «construíram as suas carreiras sobre o sangue das vítimas de Tiananmen».

Ironicamente, Li Lu, Chai Ling e a China evoluíram no mesmo sentido, nos últimos vinte anos - para um capitalismo financeiro descomplexado, que se acomoda perfeitamente a um autoritarismo político. Com raízes longínquas: «Vivíamos o sonho americano, (…) a América dos filmes de cowboys onde as pessoas se matam a trabalhar mas conseguem vencer», diz Chai Ling.

Algum problema? Talvez apenas a dificuldade em reconhecermos que precisamos de mitos e de heróis, mas que a necessidade é nossa e a vida é deles. Quem quiser, atire a primeira pedra.

(Fonte)
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14 comments:

Carla R. disse...

Não atiro pedras, mas lamento. Alguém que lutou contra a opressão, desta forma, poderia ter escolhido formas de satisfação mais profundas.
Fico triste sempre que um prédio, um quarteirão histórico em Shangai é demolido para crescer um enorme e lucrativo arranha céus. Agora quando se trata de uma personalidade, fico ainda devastada.

Anónimo disse...

Convém ler (ou reler) o Banqueiro Anarquista de Fernando Pessoa.

Anónimo disse...

Bom texto, Joana! Por que diabo haveria o "herói" de viver uma vida miserável? Por que diabo não aproveitaria o que o exílio poderia oferecer-lhe? É inteligente, sabedor, competente, "venceu na vida". Graças a um tanque em Tianamem? Why not?

Rui Bebiano disse...

Preso mais de 30 vezes como membro do Partido Internacional da Juventude (o dos Yippies), fundado em 1968, Jerry Rubin gostava de desfiar seu currículo nos debates em que participava pelo preço médio de 1500 dólares. E onde lembrava que não era capaz de sair de casa sem o seu American Express. Enriqueceu nos 80s com uma empresa que organizava festas para ricos.

Pedro disse...

Joana, sobre o "atirem a primeira pedra", não precisamos de ser, ou nos sentirmos, perfeitos, para pedir coerência aos nossos heróis. É para isso que os heróis servem. É por isso que apesar de não conseguirmos voar, ficariamos tristes e desiludidos se o Super-Homem engordasse e ficasse em casa a comer hamburgueres. Com todo o respeito, este texto, mais do que desencantado e desencantador, é cinico. Os heróis criam padrões morais. Já que o fazem, então... aguentem-se. O seu "é a vida deles", tanto serve para o tipo se tornar CEO de uma multinacional, como para se tornar quadro superior do Partido chinês. Triste.

jpt disse...

Por alguma razão o meu comentário de ontem não entrou: apenas ecoava o meu "fantástico" pois sempre pensei que o homem do tanque (ícone mesmo) tinha morrido. Gostei bastante deste post, onde descobri que não.

Do resto compreendo a desilusão de alguns, estão mais habituados a ver os seus ícones revolucionários envelhecerem (mais ou menos prolongadamente) como CEOs de ministérios ou empresas estatais, em regime de monopólio estatal e ditadura política. É, totalmente, patético esse discurso.

Já agora, JL, pobre título o seu. O ícone foi abatido? Como? Porque não foi esmagado pelo tanque? Porque não é um renunciante hindu? Hum ....

(já agora, o que é a liberdade que se defendia naquela praça? A da pobreza para todos? Mas não era isso o maoísmo combatido? Que gente ...)

Manuel Vilarinho Pires disse...

Mourir pour des idées, l'idée est excellente...

Joana Lopes disse...

jpt,
Quanto ao título: «abatem-se» por nós e salutarmente (como tento dizer no último parágrafo do post). Julgo que concordará.

Joana Lopes disse...

Pedro,
Li Lu, que eu saiba, nunca pediu a ninguém para que o honrassem como herói. Fez um acto heróico, sim, como estudante revoltado contra falta de liberdade no seu país.
Não foi um Fidel de Castro nem um Che Guevara.

Desculpará, mas esta sua frase faz-me pele de galinha: «não precisamos de ser, ou nos sentirmos, perfeitos, para pedir coerência aos nossos heróis. É para isso que os heróis servem.»
«SERVEM»???

Pedro disse...

Jpt, o “faz pela vida”, da Joana, tanto serve para o homem ser CEO como aparatchik do Partido. Cada um safa-se como pode, no seu próprio interesse.

Joana, nenhum herói pede para ser considerado herói, que eu saiba. Nenhum pede que lhe ergam estátuas. A questão não está aí. O facto é que ele fez, conscientemente, um acto heróico. Tornou-se, logicamente, um herói. E qual o problema com o “serve”? O herói tem de facto uma função, que é o de acreditarmos que o homem se pode erguer e combater as injustiças, mesmo com risco da própria vida. Ou um herói não tem uma responsabilidade acrescida em relação ao comum dos mortais? Foi sempre isto que me ensinaram. O Li Liu faz, ou fez, parte da galeria de heróis de muita gente. E quer ele queira, quer não, pesa sobre ele uma responsabilidade. Isto não é um juízo de valor, é um facto. Ninguém, como é óbvio, está à espera que o homem fique miserável e não aproveite o que a vida tem de bom. Essa é uma falsa questão. O que muitos certamente esperariam é que ele dedicasse parte da sua vida e dos seus bens a lutar por maior justiça na China. Só isso.

Joana Lopes disse...

Pedro, Acontece que ele quis seguir outro caminho, gozando do mais elementar dos direitos que reclamou: a liberdade.
Eu ficaria chocada, isso sim, se ele fizesse hoje parte da polícia chinesa e andasse a bater em operários grevistas ou a espiar bloggers inconvenientes.

Pedro disse...

Joana, que ele quis seguir outro caminho, é óbvio. Mas, já agora, não me parece que naquele momento em frente ao tanque ele tenha reclamado liberdade somente para si próprio. Porque, a ser assim, teria simplesmente saído da China, como tantos outros fizeram, legal ou clandestinamente, e ido à sua vida livremente. Não há diferença nenhuma entre um chinês CEO da Berkshire e um chinês dono de uma loja dos trezentos, sendo que nenhum destes, ao que eu sei, se colocou á frente de um tanque para isso e muito menos se tornou ícone.
Já agora, há outros meios de suportar o regime chinês, sem ser fazer parte da policia ou da espionagem. Muitas empresas estrangeiras, multinacionais, o fazem, de forma até mais eficaz, sem necessidade de sujar as mãos.

Joana Lopes disse...

Pedro

Eu não o conheço, não sonho quem possa ser, nem que idade tem, mas há algo no seu raciocínio que me faz muita impressão. Porque alguém foi «altruísta», chamemos-lhe assim, com 23 anos, e uma foto o transformou num ícone, tem de abrir uma loja de 300 em vez de ser CEO de uma grande empresa?

Já agora: a Berkshire tem negócios na China e, seguindo o seu raciocínio, Li Lu poderá andar por lá sem «sujar as maõs».

Onde está o problema? Vivam as lojas de 300?

Pedro disse...

Joana, eu não disse nada disso. Pelo contrário. Volte a ler onde eu digo que não há nenhuma diferença entre ser CEO de uma multinacional e dono ou gerente de uma loja dos trezentos. Estes, também lutaram pela sua própria liberdade e, no entanto, nunca foram ícones. Porque se tornou o Li Lu um ícone e os outros não? Porque o Li Lu, naquele momento, não estava a lutar só pela sua liberdade.
Quanto ao resto, se ele suja as mãos, se não, não faço ideia nenhuma. Mas se é para sermos pragmáticos, e para não estarmos aqui a atirar pedras aos outros, isso nem sequer interessa nada.