8.8.10

«Quando eu for grande»


No meu tempo, quase todas as meninas que estudavam (poucas, muito poucas) queriam ser professoras. Havia também as vocações declaradas para medicina ou para advocacia, o resto ficava para as excepções. A páginas tantas, foi descoberta a profissão de educadora de infância (e a «terrível» rivalidade entre a escola da Mitza e a da Maria Ulrich...), mas a nata das natas nem sequer ia para além do liceu: aprendia culinária e bordados na Obra das Mães, casava aos 20 e enchia-se de filhos. Claro que estou a falar da média e da alta burguesia lisboetas: na província, ia-se para as escolas do Magistério Primário (que hoje têm um nome complicadíssimo que me recuso a fixar), porque era o que existia nas capitais de distrito e nem sempre havia dinheiro, ou autorização dos pais, para rumar a Lisboa, Coimbra ou Porto.

Os meninos queriam fundamentalmente ser médicos, advogados (uma multidão, já com horror à Matemática), engenheiros - ou economistas, se fossem minimamente modernaços. Se tinham vocação militar ou fascínio por fardas, havia sempre a Academia ou a Escola Naval.

Com poucas alterações, excepto a menor distinção em termos de género e as mil e novecentas variantes de licenciaturas disponíveis, as inclinações mantiveram-se durante décadas. Não me recordo de nenhuma criança dos anos 80 ou 90 ter dito, a sério, que queria ir viver para as montanhas por causa da Heidi, nem de Figo ter feito explodir, em massa, vocações de futebolistas.

Mas leio que, hoje, o que está no horizonte das nossas crianças não é cuidar de doentes, ensinar quem quer que seja, construir pontes ou mesmo ser astronauta, mas sim a esperança de vir a ser um outro Ronaldo, de ganhar a volta a França em bicicleta ou de se tornar vedeta nos Morangos com Açúcar. (Nem sequer o sonho de serem engenheiros informáticos para criarem jogos para a Playstation?!)

Claro que muito de tudo isto passará com a idade e talvez fique apenas demonstrado que nem é a internet mas sim a televisão quem mais ordena nas nossas casas. Fico por isso com a enorme esperança de que ainda se vá a tempo de reformar a Justiça e que surjam excelentes vocações para Procuradores Gerais desta República – um desporto, ou um espectáculo, como outro qualquer…
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6 comments:

Manuel Vilarinho Pires disse...

Joana,

Podemos acrescentar uma dimensão de análise a esta ambição.
O trabalho infantil é hoje criminalizado e mesmo diabolizado. O dos pobres, entenda-se...
Mas há profissões que são aceites e legais: desportistas, actores, músicos.
Essas mesmas que o artigo refere...

Joana Lopes disse...

Estás a partir do princípio que estas crianças querem imitar outras crianças que vêem nessas actividades? Talvez, mas não só.

Manuel Vilarinho Pires disse...

Não exactamente, estou a dizer que há uma segregação social no modo de olhar o trabalho infantil: inaceitável no que é acessível aos pobres, aceitável e mesmo desejável e encorajado no que é acessível às classes média para alta.
E que provavelmente as crianças interiorizam esses valores e projectam-nos nas ambições que formulam...

Ana Cristina Leonardo disse...

Joana, ora agora fez-me lembrar um ano da minha vida em que andei na Maria Ulrich e no qual não pensava há séculos.
Aquilo era sinistro (uma espécie de curso de modas & bordados com uns pós de pedagogia da treta). No meio daquilo tudo ainda me diverti a andar com o autocolante do Otelo na mala, que elas queriam que eu tirasse e não tirei, tendo acabado por desistir do curso (mas não foi por isso). Primeiro, mandaram-se uma carta muito, muito simpática em que diziam lamentar que uma tão boa aluna quisesse abandonar a escola; como não me demoveram, mandaram-me uma segunda carta a ameaçar-me com o tribunal por eu não ter pago as propinas do período seguinte à desistência. Gente fina...
A única coisa que recordo bem desses tempos foi de um estágio numa creche no Barreiro, ainda o Barreiro era irrespirável e mortal para os asmáticos.

Joana Lopes disse...

Não a imaginava nessas andanças, Ana Cristina...
Por acaso, conheci mais gente na escola do Beiral do que nessa.

M. Abrantes disse...

Os miúdos de hoje já não querem ser professores. Considero-o um sinal de esperteza.