16.9.10

Assim, não


Escrevi ontem um post sobre Cuba, a propósito da anunciada transferência de 500.000 funcionários públicos para o sector privado. 24 horas depois e alguns mails nocturnos trocados desde então, regresso ao assunto por ter entretanto tomado consciência de que fui ontem demasiado meiga para a indignação que tudo isto me provoca.

Alguns números. Cuba tem cerca de 11 milhões de habitantes, dos quais 5 constituem a população activa. O governo paga hoje o salário a 50% desta população (2,5 milhões de pessoas) e vai deixar de o fazer a 500.000, daqui até Março de 2011 (e a outro tanto nos meses que se seguem).

Há quem bata palmas - finamente a iniciativa privada, a liberdade virá a seguir, etc., etc., etc. – ou quem pense o mesmo mas se cale porque é politicamente incorrecto apoiar Cuba, em qualquer circunstância. Não vou por aí: o regime cubano há-de ruir e tudo isto pode ser um empurrão para que tal aconteça, mas, nem admitindo que haja males que possam vir por bens, consigo deixar de considerar uma perfeita infâmia o que agora vai ser posto em prática unicamente por razões de tesouraria. Muitos dos 500.000 cubanos, empreendedores à força, poderão passar de uma relativa pobreza a uma inevitável indigência, até porque se sabe perfeitamente que uma percentagem significativa é constituída por supranumerários, pagos sem produzirem nada de concreto (realidade mais do que conhecida em sistemas como o cubano…) e o curto regime de compensação provisória que está previsto parece-me absolutamente insuficiente.

Mais: a ser verdade o que leio hoje, os novos «empreendedores» pagarão 25% para a Segurança Social e impostos que irão de 10 a 40%!...

Não será portanto de estranhar saber-se que «en las calles de La Habana es palpable la inquietud de los que temen perder pronto su actual empleo, aunque también son patentes las expectativas de muchos cubanos que ya hablan de sus proyectos para abrir un restaurante, un taller u otro negocio», quando «las propias autoridades admiten que muchos de los nuevos negocios "pueden quebrar antes de un año", sobre todo por inexperiência».

Lamento dizê-lo mas esta «transição» de um regime socialista não existente para uma versão rasca e miserabilista de capitalismo não me causa qualquer tipo de regozijo.

P.S. – (17/9) Vale a pena ler parte de uma entrevista feita a um cubano na Festa do Avante, transcrita pela Fernanda Câncio em hasta la victoria, mas agora vais para a rua.
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10 comments:

Anónimo disse...

Penso que, mais do que dizer o que se pensa sobre o que está para acontecer, importa é ir para o plano do imaginário e achar como devem ser as coisas. Claro que não vale partir do princípio que Cuba não está endividada até aos ossos.

Manuel Vilarinho Pires disse...

Boa noite, Joana,

Num dos primeiros comentários que deixei aqui, contei uma história que ilustra as técnicas de gestão de recursos humanos comunistas, aplicadas a uma viúva de um militante com uma pensão miserável.

Posso contar outra: o meu irmão tinha um colega comunista em direito; quando acabaram o curso, o colega arranjou trabalho na Intersindical; um dia, o meu irmão foi ter com ele ao escritório para almoçarem juntos; trabalhava numa secretária que tinha por trás um cartaz a dizer "Fim aos contratos a prazo", isto no tempo em que o Mário Soares era PM; durante o almoço, contou ao meu irmão que estava a trabalhar na Intersindical com contrato a prazo...

Também podia falar dos saneamentos do Saramago no DN, despedimentos sem processo disciplinar, sem indeminização nem direito a subsídio de desemprego.

Por isto, este "post" suscita-me a pergunta: So what? O que é que isto tem de novo?

Joana Lopes disse...

Não entendo o paralelismo, Manel
O que é que saneamentos no DN no PREC, ou contratos a prazo na Inter, têm a ver com dizer a meio milhão de funcionários públicos: «agora desenrasquem-se e tornem-se empresários»?

José T. disse...

E se "eles", os que "dizem a meio milhão de funcionários" dos seus que não há dinheiro para pagar a todos, representarem mesmo o povo e não tiverem mesmo dinheiro para pagar a todos? No capitalismo, essa coisa de clamar contra "eles" pode ser um grito de revolta contra a banca, a burguesia, o que lhe quiser chamar. E ali, quem são "eles"? Esse é o fantasma que a Esquerda portuguesa nunca conseguirá ultrapassar, habituada que está a ser do contra e a ver como fonte dos problemas uma série de variáveis que não se encontram ao alcance do "povo".

Joana Lopes disse...

Vi agora que não respondi ao Anónimo
e vou ser totalmente sincera: por mais que tente corresponder ao seu pedido para exercitar a imaginação, não consigo. Mas avance e diga o que pensa sobre o assunto.

Joana Lopes disse...

José T.,
Não tenho a certeza se entendo exactamente onde quer chegar, mas para mim há uma questão básica: Cuba é uma ditadura e portanto «eles», os que estão no poder, NÃO «representam» o povo.

Manuel Vilarinho Pires disse...

O comunismo (como patrão) sempre fomentou a mobilidade, à cacetada se necessário for.
Despediu a viúva logo que acabou o trabalho sujo da limpeza das obras, no primeiro caso.
Contratou a prazo um advogado para ajudar a combater a praga dos contratos a prazo nas empresas "capitalistas", no segundo.
Desprezou os mais elementares dos mais elementares "direitos dos trabalhadores", no terceiro.
Despede sem pudor nem piedade.
Porquê a surpresa por vê-lo despedir 500.000 funcionários públicos em Cuba (travestindo o despedimento, por manha dos tempos modernos, de "outplacement")?

Joana Lopes disse...

Talvez seja assim em todas as ditaduras, não?

Luís Bonifácio disse...

Cara Joana:

Não sou Zandinga, mas com a dívida a crescer a 2,5 milhões de euros à hora, acho que Portugal vai ter, mais cedo ou mais tarde que tomar idêntica decisão.

Manuel Vilarinho Pires disse...

Concordo que seja assim em todas as ditaduras.
Mas o primeiro e o segundo caso passaram-se em democracia, são uma versão "soft" da gestão de recursos humanos do comunismo. O terceiro passou-se num período que podia ter resultado numa ditadura, e fez parte da tentativa de a implantar, e mostra uma versão "hard".
Em Cuba, que é mesmo uma ditadura, o que é que se podia esperar? A vertente de propaganda, ao designar por transferência para o sector privado aquilo que é de facto um despedimento. E a vertente de sintonia entre o sindicato e o partido. E elas aí estão. Nada de novo, portanto...