16.10.10

Made in Portugal


Circula por aí um e-mail em que tentam convencer-nos a minimizarmos os efeitos da crise comprando, de preferência, produtos portugueses. Não sei com que base científica, diz-se mesmo que «se cada português consumir 150€ de produtos nacionais por ano, a economia cresce acima de todas as estimativas e, ainda por cima, cria postos de trabalho».

São dadas dezenas de exemplos: «[O Zé] depois de preparar as torradas de trigo (produced in USA ) na sua torradeira (Made in Germany ) e enquanto tomava o café numa chávena (Made in Spain ), pegou na máquina de calcular (Made in Korea ) para ver quanto é que poderia gastar nesse dia e consultou a Internet no seu computador (Made in Thailand ) para ver as previsões meteorológicas.» Etc., etc.

Esta cruzada reaparece ciclicamente (lembro-me bem dela na década de 80) e não sei se o Orçamento do dr. Teixeira dos Santos já contou, nas suas percentagens, com estas almas de boa vontade que o querem ajudar na sua tarefa mais ou menos suicida. Serão as mesmas que terão seguido o conselho do nosso PR e que, por zelo patriótico, não puseram certamente um pé fora do país no Verão passado.

Há várias razões pelas quais abomino este tipo de atitude.

Em primeiro lugar, pelo paroquialismo: apregoamos que a vida e a crise são globais, mas queremos proteger o nosso cantinho e o resto do mundo que se cuide. Desde que não deixe de contribuir para o aumento das nossas exportações, é claro, e continue a usar rolhas de cortiça e a beber Mateus Rosé!

Depois, no exacto momento em que o poder de compra leva uma gigantesca machadada, ainda se pede que renunciemos a escolher a melhor relação preço / qualidade como critério fundamental, só porque laranjas ou chávenas vêm de Espanha e não de Alguidares de Baixo.

Finalmente, no estado actual das coisas, esforços inúteis como este fazem-me lembrar a criancinha que, com uma caneca na mão, explicava a Santo Agostinho que ia pôr toda a água do mar dentro de um buraco feito na areia… 
...
...

15 comments:

São disse...

Pois é. Já nos falta a pachorra para tanta palermice.

Marta Bellini disse...

Excelente texto!

Joana Lopes disse...

Marta,
Descobri agora mesmo o seu blogue e estarei atenta. Abraço ao Brasil...

Manuel Vilarinho Pires disse...

Bom dia, Joana,

Concordo com todos os teus considerandos, mas não estou absolutamente certo da conclusão.
O ponto chave daquilo que argumeentas é "ainda se pede que renunciemos a escolher a melhor relação preço / qualidade como critério fundamental", porque deve ser mesmo o critério fundamental para escolhermos o que compramos.
Mas SE ao comprarmos português ACREDITARMOS que contribuimos para reduzir o desemprego em Portugal, esse expectativa pode e deve ser integrada no nosso algoritmo de selecção.
Ou por considerarmos que a redução do desemprego em Portugal melhora a nossa qualidade de vida, ou por sabermos que reduz o custos do nosso estado social que nós pagamos, esse factor afecta a relação preço / qualidade de cada um de nós.
Comprar preferencialmente português pode não ser tão irracional assim se aacreditarmos que pode contribuir para reduzir o desemprego em Portugal...

Joana Lopes disse...

Engano teu, Manel: o meu ponto-chave (e por isso primeiro) é o anti-paroquialismo. Acredites ou não, estou tão interessada em diminuir o desemprego em Portugal como no Cambodja.

Manuel Vilarinho Pires disse...

Acredito, mas fico surpreendido...
A mim não me é nada indiferente ver reduzir o desemprego em Portugal ou no Camboja, como não me foi indiferente assistir ao fim da ditadura em Portugal ou no Camboja (e lá era incomparavelmente pior do que cá).
Mas a frio não consigo formular uma resposta inteligente ao que tu dizes... logo à noite regresso a Lisboa e, se a musa me inspirar, terei qualquer coisa mais interessante para dizer.

Joana Lopes disse...

Manel, Enquanto espero pela tua ideia inteligente :-),
Uma das consequências de eu viajar em países estranhos é precisamente ganhar uma sensibilidade diferente e não foi por acaso que referi o Cambodja, pelo choque que me causou as condições em que se trabalha por lá, 364 dias por ano, nem se sabe quantas horas por dia.

É evidente que a proximidade conta e que serei muito mais sensível se o meu filho ficar desempregado ou mesmo se algo acontecer aos teus filhos. Mas isso é algo de afectivo e emocional, nada tem a ver com apelos genéricos a laços patrióticos que, para mim, se tivessem algum sentido, me apressaria a combater racionalmente.

NG disse...

A promoção do consumo do que é produzido localmente é feita em todos os países com desde campanhas publicitárias a políticas alfandegárias e cambiais (como faz capa a Economist desta semana) Têm mais qualidade de vida os cidadãos que vivem em países onde se consomem mais produtos nacionais do que importados, ou se importa menos do que aquilo que se exporta. E os países que continuamente importam mais do que exportam tarde ou cedo deixam de ter autonomia política. Invocar um certo cosmopolitismo para fazer pouco dessas políticas não passa de saloíce.

Joana Lopes disse...

Nuno,
Apesar de não ser lisboeta, tenho simpatia pelos saloios e, vinda de si, a qualificação que deve considerar insultuosa, passa-me ao lado.
Entretanto, prove, sff, isto: «Têm mais qualidade de vida os cidadãos que vivem em países onde se consomem mais produtos nacionais do que importados, ou se importa menos do que aquilo que se exporta.»

NG disse...

Joana,
Veja, por exemplo, na Europa, a situação dos países que têm défices na balança comercial e dos que têm excedentes.
Acha que se não fossem tão dependentes do exterior os portugueses precisavam de levar com uma marretada salarial e fiscal tão forte.

Joana Lopes disse...

Pelo seu raciocínio, Nuno, há maior qualidade de vida na China do que nos EUA - a léguas de distância!

NG disse...

Joana,

Pode não haver ainda. Mas pelo rumo que as coisas tomam não vai faltar muito tempo para isso acontecer, ou, pelo menos, para poder acontecer.

Joana Lopes disse...

Poupe-me, Nuno...

Manuel Vilarinho Pires disse...

Joana,
Já deves ter percebido que a minha aspiração por ver Portugal proporcionar uma vida decente aos portugueses não é inspirada no patriotismo do Salazar, dos descobrimentos e da batalha de Aljubarrota (mas deixa-me ter algum apreço pela restauração...).
Na verdade, a única causa desse domínio que me lembro de me ter feito vibrar foi o processo de independência de Timor, em que tomei como minhas as dores daquele povo que, provavelmente, até nem pensa em português, e, por uma vez, gostei muito do papel desempenhado por um governo português que foi, no mínimo, decente.
Já deves ter também percebido, nomeadamente pela forma como me vês defender a selecção nacional e o "meu" Sporting, ou o meu determinado auto-enquadramento na esquerda ou na direita, que o meu sentido clubístico tem grande margem para aperfeiçoamento.
Não é pois daí que me vem a sensibilidade à ideia de que consumir português pode ter algum valor que acresce à análise da relação qualidade/preço daquilo que consumo.
Tenho muita pena das condições de vida no Caboja, ou noutro países semelhantes. Se me convencesse que ao comprar cambojano estaria a contribuir para as melhorar, estou certo que também integraria isso nos meus processos de selecção quando consumo.
Mas, como dizes, a proximidade (seja geográfica, seja de outra natureza) pesa na valorização que fazemos das misérias dos outros. E sou mais sensível à que está mais próxima de mim. Até porque tendo a simpatizar colectivamente com o povo português, e o meu convívio com outros povos, nomeadamente europeus, nunca me convenceu de que a minha simpatia seja mal dirigida.
Se soubesse como resolver o problema de proporcionar uma vida decente a toda a humanidade, não hesitaria em defender essa solução. Mas não sei.
Mas tenho noção que questões como comprar português ou comprar importado podem ter alguma influência nalguns factores que contribuem para o bem estar ou a miséria em Portugal, nomeadamente o emprego.
Por isso, não acho nada disparatado valorizar mais um produto por ser português, ou atribuindo-lhe um bonus de qualidade, porque comprá-lo pode ter influência na minha qualidade de vida pelo incremento do emprego em Portugal, ou atribuindo-lhe um bonus no preço, porque comprá-lo pode contribuir para, pelo mesmo motivo, reduzir os custos sociais do desemprego que também me saem do bolso.
Mesmo sabendo que ao contribuir para aumentar o emprego em Portugal, posso por contraponto contribuir para o reduzir na China ou no Vietname.
Gostei dessa definição de "a proximidade conta", e termino repetindo-a...

Joana Lopes disse...

Entendo-te perfeitamente, Manel, e até arrisco que a maior da parte das pessoas pensa como tu, em termos gerais.
Eu sou muito pouco sensível (para não dizer que não o sou mesmo) a essa pertença a este povo. Por exemplo, há quem se emocione com pegadas dos descobrimentos por esse mundo fora: o cruzeiro de D.Cão na Namíbia, as igrejas em Goa, etc. etc. É-me perfeitamente indiferente que sejam portuguesas ou outra coisa qualquer... Daí, que a dita «proximidade» que me levaria a procurar sabonetes Ach.Brito não funcione mesmo.