A dois dias de uma sessão que se realizará em Lisboa sobre «A Pragma e a Confronto nas últimas décadas da ditadura», durante a qual será homenageado Nuno Teotónio Pereira - o principal impulsionador destas duas Cooperativas -, recordo a história da primeira.
Se é totalmente incorrecto fazer coincidir o início da oposição dos católicos ao salazarismo com a década de 60, não há dúvida que foi nela que se deu a verdadeira explosão de actividades daquela oposição. Dois factores contribuíram decisivamente para que isto acontecesse: dentro da Igreja, as perspectivas de abertura criadas pelo Concílio Vaticano II e o conservantismo da Igreja portuguesa; na sociedade em geral, a ausência de liberdades elementares e a manutenção da guerra colonial, com todas as insuportáveis consequências que arrastou. Ao invocarem a sua condição de católicos em iniciativas cada vez mais radicais, aqueles que o fizeram atingiram um dos pilares ideológicos mais fortes do regime e este foi acusando o toque.
É certo que se tratou de uma oposição que manteve sempre uma certa informalidade organizativa. Concretizou-se em iniciativas e instituições, mais ou menos ligadas entre si através dos seus membros, mas, em parte propositadamente, sem uma estruturação sólida e definida. Daí derivaram fraquezas e forças e, definitivamente, características específicas.
A Pragma foi uma dessas instituições – com uma importância e projecção ainda relativamente desconhecidas. Foi fundada por um grupo de católicos, em Abril de 1964, como uma «Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária». Porquê uma cooperativa? Porque foi a forma de tirar o partido possível de uma lacuna legislativa: as cooperativas não tinham sido abrangidas pelas limitações impostas ao direito de associação e, por essa razão, nem os seus estatutos eram sujeitos a aprovação legal, nem a eleição dos seus dirigentes a ratificação pelas entidades governamentais. Forçando uma porta entreaberta por um lapso do poder, os fundadores da Pragma puseram mais uma peça no puzzle da oposição ao regime – cuidadosa e imaginativamente.
Desde o seu núcleo inicial, a Pragma não se restringiu ao universo «intelectual» e incluiu também sócios provenientes do meio operário, nomeadamente dirigentes e militantes das organizações operárias da Acção Católica. Os horizontes abriram-se rapidamente e muitos dos seus futuros membros nem sequer seriam católicos. Aliás, a Pragma acabou por funcionar também como uma espécie de plataforma aglutinadora de elementos da esquerda não-PC que, por não estarem integrados em qualquer estrutura organizativa, nela identificaram um espaço de debate e de encontro (foi o caso, por exemplo, de muitos activistas das lutas estudantis de 1962).
Subjacente a este novo projecto estava, obviamente, um posicionamento de oposição ao regime como um todo, à falta de liberdades, à guerra de África. Pretendeu-se explorar mais uma janela legal de oportunidades, complementar outras iniciativas, criar possibilidades para acções concretas e úteis, aumentar a consciência política e social de um número cada vez maior de pessoas.
Mário Murteira foi o sócio nº 1 e o primeiro Presidente da Direcção. Nuno Teotónio Pereira, sócio nº 2 e segundo Presidente, manteve-se até ao fim como o seu principal animador.
«Oficialmente», os Estatutos definiram como objecto da Cooperativa: «a) – Facultar aos seus sócios a maior defesa económica nos artigos que possam adquirir ou produzir; b) – Promover o aperfeiçoamento moral, cultural e técnico dos sócios e suas famílias [...]; c) – Instalar casas de férias para sócios e famílias.»
Durante os primeiros três anos, estes objectivos, nomeadamente os dois primeiros, foram concretizados num número absolutamente notável de iniciativas.
Na área da promoção cultural e técnica, para além de um ciclo de cinema e de exposições, organizaram-se, em três anos, largas dezenas de cursos (com muitas aulas), colóquios (com várias sessões), conferências e reuniões temáticas. Nalgumas destas iniciativas, participaram centenas de pessoas. Escolhiam-se os títulos «possíveis», o que se passava na realidade ia bem mais além…
Em Abril de 1965, por ocasião de um colóquio sobre Planeamento económico e progresso social, a Pragma organizou uma exposição baseada no Parecer da Câmara Corporativa sobre o Plano Intercalar de Fomento para 1965¬ 1967: sessenta painéis com fotografias, gráficos e comentários, em que os textos e dados estatísticos foram extraídos dos documentos oficiais. O Parecer, que era muito crítico, tinha sido elaborado por Francisco Pereira de Moura, então Procurador à Câmara Corporativa. Depois de exibida em várias localidades, acabou por ser apreendida pela PIDE, em S. Mamede de Infesta.
A PIDE esteve atenta à Pragma desde o início. Em processo próprio arquivado na Torre do Tombo, há informações sobre actividades e pessoas ligadas à Cooperativa desde 1964, bem como relatórios de informadores da PIDE.
A realização de sessões públicas pressupunha uma autorização prévia concedida pelo Governo Civil. A Pragma submeteu por isso um pedido relativo a uma conferência sobre Emigração – situação de crise ou factor de progresso?, que deveria ter lugar em 28 de Fevereiro de 1967. Depois de consultada a PIDE, que considerou «inconveniente» a realização da sessão, o Governo Civil de Lisboa indeferiu o pedido. Compreende-se a razão – emigração era um tema especialmente sensível, já que, em 1966, tinham sido 125.000 os portugueses que, legal ou clandestinamente, tinham deixado o país. Devido à recusa de autorização por parte do Governo Civil, o ciclo sobre emigração ficou limitado aos sócios, que assistiram às duas primeiras sessões na sede da Cooperativa. A terceira deveria ter tido lugar precisamente no dia em que a sede foi encerrada pela PIDE.
Começou então uma nova etapa na vida da Pragma. Entretanto, a Cooperativa tinha crescido rapidamente ao longo dos três primeiros anos: de 111 sócios em Dezembro de 1964, passara para 216 no fim de 1965 e para 305 no de 1966. Em Abril de 1967, tinha 340 sócios.
O encerramento da sede e as reacções
No dia 6 de Abril de 1967, quando se encontravam na sede da Cooperativa, na Rua da Glória, Natália Teotónio Pereira e António Macieira Costa, apresentou-se uma brigada de agentes da PIDE, com ordem para realizar uma busca às instalações. Esperaram por Nuno Teotónio Pereira, então já Presidente da Direcção, entretanto avisado. Um painel com documentos sobre emigração atraiu imediatamente a atenção dos agentes. Deveria realizar-se, nessa mesma noite, a já referida terceira sessão sobre aquele tema, intitulada Visão histórica da emigração portuguesa, sob a orientação de Joel Serrão e com a colaboração de Vitorino Magalhães Godinho.
Enquanto decorriam as buscas, chegou alguém que passou a ser objecto de comportamento reverente por parte dos agentes e que foi apresentado a Nuno Teotónio Pereira como o «Subdirector Sachetti». Agitado, apontou para o painel e terá dito:
«Ali está o que nós suspeitávamos! São estas as ideias que vocês espalham. Hão-de ver na Polícia a criminosa acção que estão a fazer. Um desgraçado em África traiu os seus camaradas e disse que a culpa era toda vossa!»
As instalações foram seladas para que a diligência pudesse continuar no dia seguinte. Nuno Teotónio Pereira seguiu com os agentes para a sede da PIDE – de táxi – e foi mais tarde levado para a prisão de Caxias. A caminho da cela, iniciou este extraordinário diálogo com o guarda que o acompanhava:
- Tem havido muito movimento?
- Não, pouco, isto está muito parado e muitas celas estão vazias. E o que dá ainda alguma coisa é a emigração. Políticos agora são menos. O senhor é da emigração ou dos políticos?
- Sou dos políticos.
- Pois é, disso tem havido pouco. Compreende: cada um trata mas é da sua vida.
Vinte e quatro horas depois, foram presos outros elementos da Direcção: João Gomes, António Macieira Costa, Nuno Silva Miguel e Ana Marques [hoje Ana Vicente]. Em todos os casos, houve buscas domiciliárias, interrogatórios na sede da PIDE e detenção em Caxias, até 10 de Abril, dia em que foram libertados juntamente com Nuno Teotónio Pereira.
Acontece que, para o dia seguinte, estava marcado um serão de convívio comemorativo do terceiro aniversário da Cooperativa, a ser realizado na Sociedade Nacional de Belas Artes. A PIDE proibiu a realização da sessão, comunicou essa proibição aos dirigentes da Pragma antes de os pôr em liberdade e obrigou-os a comprometerem-se, por escrito, a fazê-la respeitar.
Nesse 11 de Abril, precipitaram-se vários acontecimentos. Os jornais publicaram uma Nota Oficiosa da PIDE sobre as razões para o encerramento da sede da Pragma. Uma resposta, enviada imediatamente pela Direcção, foi cortada pela Censura e não foi portanto divulgada por nenhum órgão de comunicação social.
Alguns membros dos órgãos dirigentes pediram uma audiência ao Cardeal Patriarca de Lisboa para o porem ao corrente dos acontecimentos. Pouco antes da hora prevista para a dita audiência, os sócios tomaram conhecimento da proibição do serão de convívio, através de um aviso afixado na porta fechada da Sociedade Nacional de Belas Artes. Resolveram dirigir-se também para o Patriarcado, onde os dirigentes esperavam a reunião com Cerejeira. Aglomeraram-se à entrada mais de duzentas pessoas. Tinham entretanto chegado forças da PSP, mas as portas abriram-se e todos entraram para o átrio, o que evitou males maiores.
Com data de 13 de Abril, foram redigidos dois abaixo-assinados, um dirigido ao Presidente da República, outro aos Bispos Portugueses. O primeiro foi assinado por 280 pessoas de vários quadrantes políticos, todos sócios ou colaboradores da Pragma, católicos ou não, o segundo por 547 católicos. Houve 124 assinaturas comuns aos dois documentos, o que significa que, em conjunto, estas iniciativas mobilizaram 827 pessoas – número absolutamente notável e excepcional para a época.
Organizaram-se verdadeiras brigadas para recolha de assinaturas e não só em Lisboa. Por exemplo no abaixo-assinado endereçado aos bispos Portugueses, houve larga participação do Porto, e também de Coimbra, Estremoz, Évora, Leiria, Santarém e Marinha Grande. Entre os subscritores, contavam-se vinte e cinco padres ou membros de ordens religiosas. Importa sublinhar o esforço que representou esta recolha de assinaturas. Se hoje é possível criar uma Petition Online na Internet em menos de um minuto e se podem obter milhares de adesões em pouco tempo, a vida era bem diferente em 1967: recolha porta a porta, em papel azul de vinte e cinco linhas, sem Internet, sem telemóveis, com telefones fixos vigiados pela polícia, com correio apreendido, com poucos automóveis. (Os serões que eu passei calcorreando Lisboa, «cravando» um amigo mais timorato mas com posses para ter carro, que me esperava enquanto eu subia lanços e lanços de escadas – é que também não havia assim tantos elevadores…)
Foi também grande a repercussão do encerramento da sede da Pragma na imprensa internacional, tanto de orientação católica (Informations Catholiques Internationales, Témoignage Chrétien, etc.), como de grande circulação (Le Monde, New York Times, The Times).
Tempos difíceis
Depois de ouvidos advogados, foi considerado que o facto de a sede estar inacessível, e de os seus dirigentes serem objecto de instauração de um processo pela PIDE, não impedia que a Cooperativa prosseguisse as suas actividades.
Iniciou-se então um árduo percurso, recheado de iniciativas e assente em fortes laços de solidariedade que permitiram cedências de locais e de outros meios logísticos. Sociedade Nacional de Belas Artes, Bombeiros Voluntários Lisbonenses, Centro Nacional de Cultura, Casa da Imprensa, Capela do Rato, Igreja de S. João de Brito e outras instituições foram abrindo as suas portas para reuniões, colóquios, conferências, Assembleias-gerais. Entre Abril e Dezembro de 1967, o número de sócios aumentou de 340 para 390.
Intensificou-se também, naturalmente, a acção da PIDE quanto a proibição de sessões. Em 9 de Setembro de 1967, agentes da PIDE impediram a discussão sobre As possibilidades económicas no acesso à Universidade – Inquérito Geral à Universidade promovido pela Juventude Universitária Católica. Nuno Teotónio Pereira foi chamado à PIDE para prestar declarações, depois de um debate que foi possível realizar em 16 de Novembro, na Igreja de S. João de Brito, com a participação de mais de 500 pessoas, sobre O III Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos. (Repare-se na «perigosidade» dos temas acima indicados…)
Paralelamente, deu-se início a um longo processo de contestação do encerramento da sede, que incluiu um recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. Este viria a tomar uma posição favorável à Pragma, em Julho de 1968, embora essa decisão não tenha tido quaisquer efeitos práticos.
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Existiam, paralelamente à Pragma, outras cooperativas mais ou menos afins. A mais próxima era a CONFRONTO, fundada no Porto à imagem e semelhança da Pragma.
Regressado de Angola, Mário Brochado Coelho liderou este projecto e, em 27 de Julho de 1966, foi eleito Presidente da Direcção, sendo Francisco de Sá Carneiro o Presidente da Assembleia-Geral e sócio nº 1.
A CODES, uma cooperativa de carácter cultural e socioeconómico, tinha sido criada em 1962 e alguns dos seus membros foram, desde a primeira hora, sócios ou estreitos colaboradores da Pragma. Mais tarde, foram fundadas a DEVIR, ligada ao Partido Comunista Português, e a CED – Cooperativa de Estudos e Documentação, afecta aos primórdios do Partido Socialista.
Entretanto, já durante o marcelismo, em 27 de Novembro de 1971, foi publicado um decreto (570/71) que assimilou as cooperativas que exercessem qualquer tipo de actividade cultural, independentemente do seu objecto principal, às outras associações. Estatutos e dirigentes passaram então a ficar sujeitos a aprovação governamental, o que provocou uma forte contestação no seio do movimento cooperativo. Os dirigentes da CED entregaram aos deputados da Assembleia Nacional uma longa exposição, pedindo-lhes que não ratificassem o decreto. Obviamente, não veriam este seu pedido satisfeito…
A Pragma prosseguiu. Em 20 de Janeiro de 1972, ainda realizou uma Assembleia-Geral nas instalações do Centro Nacional de Cultura. Participou, no dia seguinte, numa Reunião Nacional de Cooperativas, que teve lugar em Coimbra. Em 3 de Fevereiro de 1972, a PIDE emitiu um ofício interno, assinado pelo chefe Mortágua, ordenando uma busca às instalações da antiga sede da Pragma na Rua da Glória, «a fim de apreender livros, documentos, valores ou objectos, que possam interessar à instrução de uns autos em curso na Direcção Geral de Segurança». Recebeu como resposta que, na referida morada, se encontravam, desde há quatro anos, os «Armazéns Primavera», dedicados ao comércio de roupas… Não encontrei documentos sobre actividades da Cooperativa posteriores a estas datas. Mas sei que nunca foi legalmente encerrada.
A história da Pragma é uma bela história. Ela ilustra bem alguns ambientes da última década do fascismo. Mobilizou muita gente, abriu horizontes, influenciou muitos jovens que foram chamados para combater na guerra colonial – alguns desertaram, outros tiveram um papel activo, como milicianos, na alteração de mentalidades, e na preparação do 25 de Abril.
Muitos dos sócios, dos colaboradores, e mesmo dos dirigentes, estavam longe de ser perigosos esquerdistas!… Queriam a liberdade, a paz, o desenvolvimento e o progresso social – um país decente.
(Este texto foi escrito com base num capítulo do meu livro Entre as Brumas da Memória. Os Católicos Portugueses a Ditadura, Âmbar, 2007: «A cooperativa Pragma – Uma boa ideia e uma bela história» e foi publicado em 2009 nos Caminhos da Memória.)
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3 comments:
Desculpe, mas está a falar exactamente de quê???
O único livro que existe sobre a Confronto foi publicado há poucos meses, em 2010. Não existe nenhum livro sobre a Pragma.
Não tem mais que fazer do que distribuir provocações sem sentido pelas Caixas de Comentários?
A pedido do autor, apaguei dois comentários e um terceiro que se lhes referia.
A propósito da Guerra Colonial, a que aqui se faz alusão, recordo que hoje (4 de Fevereiro) se assinala o 50º aniversário do seu início. Fiz a propósito este apontamento no Facebook:
"Assinala-se hoje o 50º aniversário do início da Guerra Colonial portuguesa ocorrido em 4 de Fevereiro de 1961, quando por uma revolta em Luanda foram atacados a Casa de Reclusão, o quartel da PSP e a Emissora Nacional. A guerra na Guiné iniciou-se em 23.01.1963, com um ataque ao quartel de Tife, embora desde 1961 tenham existido acções de sabotagem e um ataque ao quartel de S. Domingos, na fronteira com o Senegal. Em Moçambique a guerra iniciou-se em 25.09.1964, com um ataque ao quartel do Chai, em Cabo Delgado, embora a FRELIMO já tivesse entrado em Moçambique em 15 de Agosto desse ano.
Muitos dados poderão ser consultados no portal «Guerra Colonial» em www.guerracolonial.org."
A guerra Colonial dirá hoje muito pouco à maioria da população portuguesa. Basta referir que os civis que nela participaram como militares terão hoje entre 58 e 80 anos, apenas podendo ter mais idade os militares de carreira.
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