19.7.11

As sestas


1 - Estava eu no Cambodja, há pouco mais de dois anos, quando soube que o governo da Dinamarca ia aprovar o direito a uma sesta de vinte minutos por dia para alguns grupos de trabalhadores, como uma experiência teste a ser eventualmente alargada a todo o país. Por cá, ninguém reagiu.

Mas eu recebi a notícia como um verdadeiro murro no estômago, certamente maior do que aquele que Pedro Passos Coelho sentiu, na semana passada, já nem sei porquê. Eu tinha andado esse dia por Tonlé Sap, o maior lago de água doce do Sudoeste asiático, onde vivem, em barracas flutuantes, milhares de pessoas (e cães, gatos e até porcos…), em situações degradantes quase inimagináveis. Guardei, aliás, do Cambodja, algumas das mais marcantes imagens de miséria, que me foi dado ver. 

Escrevi então: «Será possível, viável, um mundo em que se possa dormir a sesta sem que outros (aqui) trabalhem 364 dias por ano, nem se sabe quantas horas por dia? »

2 - Em Julho de 2011, chegou a vez de uma confederação de sindicatos alemães pedir o mesmo direito à sesta. Pela blogosfera, no Facebook e em comentários dos jornais, levantou-se um clamor contra a senhora Merkel e seus súbditos. Porque, entretanto, passámos para cambojanos da Europa.

3 – Num qualquer mês de 20??, veremos os alemães indignados porque os operários da Foxconn já interrompem o fabrico de iPhones para uma pausa pós-prandial?

Impossível? Pouco provável? Ora…
.

3 comments:

Paulo Topa disse...

Eu não tenho a certeza absoluta, mas parece-me que a sesta melhora a condição geral de cada um (e em termos pessoais isso é óptimo) e a produtividade de cada um (o que também é óptimo para as empresas). Assim, é uma solução de duplo ganho.
Nem sempre trabalhar mais significa produzir mais. Precisamos de nos dedicar mais a estas soluções que representam ganhos para os dois lados quando é possível.

Miguel Serras Pereira disse...

Joana,
parece-me que o que está mal não é a sesta, mas 1. haver quem não a tenha depois de, para mais, ter tido pouca noite e menos tempo livre; 2. a falta de uma perspectiva de mundialização da solidariedade. Quanto ao resto, como reivindicação, a sesta é sem dúvida mais universalizável do que um automóvel por cabeça e uma televisão, duas consolas de jogos e um ou dois computadores por divisão da casa, a renovação anual ou semestral de parte dos equipamentos electrodomésticos e afins, etc., etc.
Finalmente, no que se refere ao comentário anterior (Paulo Topa), eu diria, sem negar a pertinência da sua reflexão, são os níveis e conteúdos da produtividade que devemos discutir, dando ao mesmo tempo prioridade ao debate democrático - logo, generalizado - sobre a "vida boa" e sobre as suas concepções rivais. Por mim, não imagino uma vida - vá lá, não sejamos utópicos - "suficientemente boa" sem sesta (não obrigatória) e/ou sem extensão dos tempos livres (ainda que alguns os aproveitem para continuar a trabalhar por ser essa a sua livre e não remunerada vontade…).
Sei que não andarás muito longe disto, e, se aqui deixo esta nota, é só para que possas precisar melhor a tua ideia e evitar que o teu post dê margem a equívocos.

Abraço

miguel (sp)

Joana Lopes disse...

Respondo ao Paulo e ao Miguel que «a sesta» funciona aqui como um símbolo.
O que é intolerável - e o Miguel aponta-o - é que subsistam no mesmo mundo, no século XXI, tão gritantes desigualdades. E, também, que elas estejam a agudizar-se,e não a esbater-se, mesmo dentro da própria e desgraçada Europa!