No Público de ontem (sem link), mais um importante texto de Boaventura Sousa Santos. Aqui fica (os realces são meus).
«No seu artigo no PÚBLICO de 2 de Julho, São José Almeida perguntava sobre o tipo de democracia em que estamos. A pergunta está na mente de muita gente e deve ser respondida. Como contributo para o debate, ofereço a minha resposta. É uma democracia de muito baixa intensidade, que assenta nas seguintes ideias-mestras:
1. As expectativas quanto ao futuro próximo são descendentes (as coisas estão mal mas vão ficar ainda pior) e têm de ser geridas com grande controlo do discurso do Governo e do comentário conservador ao seu serviço, de modo a excluir do horizonte qualquer alternativa credível. Desta forma, é possível transformar o consenso político eleitoral em resignação cidadã, a única maneira de manter vazias as ruas e as praças da revolta.
2. Uma profunda transformação subterrânea do regime político corre paralela à manutenção, à superfície, da normalidade democrática da vida política. Trata-se de um novo tipo de Estado de excepção, ou de Estado de sítio, que suspende ou elimina direitos e instituições sem ter de revogar a Constituição. Basta ignorá-la, para o que conta com a cumplicidade de um Presidente da República que paradoxalmente conseguiu atingir, sem governar, os objectivos por que lutou em vão quando governou; com a demissão do Tribunal Constitucional treinado para os baixos perfis das minudências formais; e com a paralisia de um sistema judicial demasiado desgastado social e politicamente para poder assumir a defesa eficaz da democracia.
3. A tutela internacional da troika não colide com a soberania nacional, quando o poder soberano não só está de acordo com o conteúdo político da tutela, como inclusivamente se legitima através do excesso com que a acolhe e reforça. Domina a crença de que um governo de direita de um pequeno país não tem o direito nem a necessidade de inovar. As medidas políticas para a destruição do Estado social e dos serviços públicos estão testadas com êxito nos governos de referência. Para saber o que vai acontecer na saúde, na educação, nas pensões e na assistência aos idosos, ou o modo como se vai dissimular o número de famílias que perderá a sua casa nos próximos tempos, basta estar atento à imprensa inglesa. A ausência de inovação é disfarçada pelo estilo de apresentação (de preferência, com alguma radicalidade) feita por uma classe política jovem que transforma credivelmente retrocesso político em renovação política, inexperiência em benefício da aposta, total submissão a interesses económicos poderosos (nacionais e internacionais) em garantia contra a corrupção.
O novo regime pensa-se como de longo prazo. Quando for superado, Portugal será um país muito diferente e assim permanecerá por muito tempo. O problema é que as armadilhas (tal como as minas antipessoais) são cegas e não reconhecem os donos. O Governo criou a sua própria armadilha ao pensar que a tutela internacional podia ser usada em dose controlada: usá-la para realizar o projecto político que a direita, por si só, nunca foi capaz de levar a cabo, mas impedir que os condicionalismos da tutela destruam o país. A armadilha reside em que a tutela, porque é internacional, vê Portugal à escala de um lugarejo e não submete a dosagem da sua intervenção a outros critérios que não sejam os seus.
Por todas estas razões, o 25 de Abril do próximo ano será o primeiro da lembrança de uma perda irreparável. Para ter alguma força, sugiro que se fundam nele o 5 de Outubro e o 1 de Dezembro. Haverá menos feriados, o que convém, e mais significado, o que convém ainda mais.»
Director do Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado, da Universidade de Coimbra
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