11.8.11

Podia ter sido em Portugal?


Depois de ouvir o 20º jornalista perguntar ao 50º entrevistado se é possível que fenómenos como os que presenciámos em Inglaterra venham a ter lugar em Portugal, a resposta óbvia é que SIM. Não nos mesmos moldes, não com a mesma dimensão, mas porque uma parte da realidade nua e crua que lhes está subjacente é a mesma (sem que, com esta afirmação, esteja a tomar partido a favor dos actos selváticos de Londres e outras cidades).

Na comodidade dos nossos sofás, tal como os londrinos em Knightsbridge onde os factos só existiram nos ecrãs de televisão, continuamos a ignorar o quotidiano na periferia das nossas grandes cidades.

Republico um post que tem cerca de um ano. Não porque considere que aquilo que aconteceu em Inglaterra tenha sido consequência de discriminação racista (não foi), nem por pensar que todos os nossos polícias são facínoras (mas é bom no entanto não esquecer que foi com uma morte provocada por um tiro policial que tudo começou em Inglaterra).

Republico porque é no grande «caldo» das condições das vidas periféricas que nascem estes fenómenos e porque conheço pessoalmente os protagonistas da história e quem a relata - ela «existe» para mim. E pensei nisto dezenas de vezes nos últimos dias.

Hezbollah e LBC agredidos pela PSP

Às 4:55 horas da madrugada de domingo 14 de Junho, no Parque Central da Amadora, um grupo de jovens, entre os quais Jakilson Pereira, 26 anos, licenciado em Educação Social, desempregado e candidato a bolsa de investigação, dirigiam-se para a Mina, Amadora.

Jakilson, que também é rapper e é mais conhecido como Hezbollah, agachou-se para apertar os atacadores dos ténis. De repente sentiu um automóvel aproximar-se dele. Levantou a cabeça e viu um homem com uma arma apontada na sua direcção que gritou “Caralho!” Assustado, Hezbollah correu na direcção do seu amigo Flávio Almada, 27 anos, estudante finalista do curso de Tradução da Universidade Lusófona, também rapper e mais conhecido como LBC, mediador sociocultural na Escola Intercultural das Profissões e do Desporto da Reboleira e formador musical de jovens inseridos no Projecto Escolhas do Moinho da Juventude e da Comissão de Moradores da Cova da Moura. LBC disse ao agressor: “Ele está desarmado!”, referindo-se ao seu amigo Hezbollah. Nesse momento, o homem disparou um tiro na direcção de Hezbollah. O homem estava fardado, era da PSP e tinha sido transportado para o local por um automóvel da PSP.

Hezbollah continuou a fugir e foi esconder-se por trás de um automóvel junto à Estação dos Correios, observando a progressão do agente da PSP que o procura de arma na mão. O agente detecta-o e corre na sua direcção. Sai outro agente do automóvel e ambos cercam Hezbollah. Agarrando-o sob ameaça da arma, começaram a pontapeá-lo. Chega um automóvel Volkswagen Golf preto, com dois polícias à paisana. Enquanto um dos agentes fardados algema Hezbollah, obrigando-o a deitar-se de barriga no chão, o outro polícia fardado volta a dar-lhe pontapés. Um dos agentes à paisana exclama: “Deixa o rapaz!”

Entretanto LBC tinha-se aproximado para tentar socorrer o amigo. Os polícias fardados agarram-no, deitam-no ao chão e algemam-no, pontapeiam-no e depois metem-lhe um pé sobre a cabeça e tiram-lhe a carteira e o telemóvel.

Levam-nos – cada um dos detidos no seu automóvel – para a Esquadra da Mina, na Avenida Movimento das Forças Armadas 14. Aí aparece o agente Monteiro e pergunta a Hezbollah, agarrado pelos braços por dois outros agentes para o manterem sentado numa cadeira: “Estás preparado?” e começa a dar-lhe socos e joelhadas na barriga. Hezbollah vomitou em consequência dos dois primeiros socos. LBC também é sovado. Um dos agentes comenta a certa altura: “Aqui estão os dois gajos. Qual de vocês é que tem um caso com a polícia?” Hezzbollah foi absolvido há cerca de um mês da acusação de ter partido dois dedos a um polícia, quando na realidade o que aconteceu foi que, ao voltar para casa à noite, foi cercado por vários polícias, que o deixaram inanimado, sem sapatos e sem casaco, num terreno vago, depois de barbaramente espancado, a ponto de lhe partirem a cana do nariz.

Metem-nos de novo no automóvel e levam-nos para a Esquadra do Casal da Boba, na Amadora. Depois de os encostarem a uma parede, o agente Nunes dessa esquadra dá um forte pontapé no estômago de Hezbollah, enquanto outros agentes o seguram e batem para o impedir de se encolher a proteger-se da agressão. Um dos polícias comenta: “Qualquer dia vão encontrar o teu corpo morto na mata de Monsanto”. Tiram fotografias aos dois detidos. LBC é colocado ao lado de Hezbollah e um dos polícias acusa LBC de ter em seu poder um telemóvel roubado. Ele nega e é-lhe devolvido o telemóvel, que lhe tinha sido confiscado e levado para outra sala, depois de verem as mensagens e chamadas.

Foram levados de novo para a Esquadra da Mina. Lá chegados, os detidos repararam na presença do rapaz e da rapariga com quem Hezbollah e LBC tinham trocado palavras que provocaram uma cena de socos entre Hezbollah e o rapaz, na Estação da Amadora.

Repete-se a cena de Hezbollah, ainda algemado, ser agarrado pelos ombros e braços e agredidos a soco no estômago pelo agente Monteiro. LBC interpela-os dizendo “Porque é que estão a fazer isso?” e foi imediatamente agredido a pontapé pelos dois agentes que o enquadravam.

O agente diz-lhe que vai ter de limpar o vomitado com a boca. Hezbollah recusa-se e o agente Monteiro e o agente Ferreira – que tinha tirado o crachá – Insistem: “Vais limpar, vais limpar” e, segurando-o, lançaram-no por cima do vómito e arrastaram-no para trás e para a frente, como se fosse uma esfregona, até o vómito ensopar por completo as calças, o casaco. Num canto ainda ficou um resto de vómito. O agente Monteiro pega no boné de Hezbollah e lança-o sobre esse canto e, colocando-lhe o pé em cima, esfrega-o sobre o vomitado. O agente Monteiro deixou de lhe dar socos mas passou a dar-lhe pontapés, chamando-lhe “porco”.

Os detidos ficaram ali até às onze horas e tal da manhã, altura em que lhes passaram um papel para comparecerem no Tribunal de Alfragide às 10h do dia 14 de Junho e os deixaram sair da esquadra, depois de, pela primeira vez, os desalgemarem. O documento refere-os como arguidos e acusa-os de “agressão à integridade física”, sem referir a quem.

LBC e Hezbollah passaram todo o dia de domingo nas suas respectivas casas (Reboleira e Amadora respectivamente).

Na 2ª feira apresentaram-se ao tribunal, onde encontraram os agentes Monteiro e o outro torturador, o agente Ferreira, ambos à civil. Também estavam presentes o rapaz e a rapariga com quem Hezbollah tinha trocado palavras e socos na Estação da Amadora. Os polícias deram-lhes dois chocolates Twitters. Perante isto, LBC e Hezbollah disseram no seu depoimento que um amigo deles que estava presente naquele episódio e tentara acalmar os ânimos devia ser chamado para o seu testemunho ser confrontado com o deles. A funcionária do tribunal perguntou a Hezbollah se queria um advogado oficioso e ele recusou. A funcionária tomou nota de toda a ocorrência, e deu a ler o depoimento aos detidos, que assinaram.

O caso vai ser investigado. A funcionária recomendou a Hezbollah que não lavasse as roupas sujas com vómito.

Neste momento Hezbollah e LBC não têm advogado que os defenda e sabem que, se nada for feito para dar publicidade a esta situação, continuarão a ser alvo da brutalidade policial. Foi o que aconteceu com Tony da Bela Vista, Teti, torturado até morrer de hemorragia interna, Angoi, morto com dois tiros nas costas, PTB abatido dentro do carro, Snake, assassinado com um tiro nas costas quando conduzia o seu automóvel, Corvo, abatido com um tiro na cabeça, Kuku, morto aos 14 anos com um tiro a 12 cm da cabeça, Célé, morto com 62 balas, etc.

Ana Barradas
19/06/2010

(Mais tarde, foi posto um processo contra a PSP, mas não sei neste momento se teve algum desfecho. Vou tentar informar-me.)
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11 comments:

Anónimo disse...

Juventude revoltada

http://funnywannadie.blogspot.com/2011/08/teenage-riot.html

Anónimo disse...

Bem, estas descrições são muito graves e carecem, como sempre de algum enquadramente...todas elas, e tal não foi feito. O que não justica, mesmo assim, estas formas de actuação. Reparei que se descreve a morte de 'snake' como um assassinato num carro...e claro, esqueceu-se de dizer que este senhor não porou numa operação stop e era procurado pela polícia. Todo este enquadramento faz a diferença, que, mesmo assim, repito, não deve ser aceitável. Claro que o agente quando disparou não esperava matar ninguém, nem faz sentido pensar isso, porque os agentes não são justiceiros, muito menos assassinos, mas não devia ter disparado, é claro. Tenho pena da forma parcial como são contadas algumas situações, como é o caso desta. Também considero que deveria haver mais controlo destes agentes, para
protegem ambas as partes. Já ouvi falar em cenas inacreditáveis, que depois se revelaram bem diferentes! É sempre de lamentar estas situações, bem como a parcialidade de quem as conta!

Agente disse...

Se me permite,

Gostaria que houvessem relatos desse género sempre que um polícia é agredido, humilhado, desautorizado e ultrajado no cumprimento das suas funções. Infelizmente não existem.

Gostaria também de saber quantas vezes as pessoas que tanto criticam as atitudes da polícia vão à Amadora, sem ser via notícias de jornal.

Todos os dias há assaltos na Damaia, todos os dias há confrontos na Buraca e na Reboleira, todos os dias os telefones das esquadras da Amadora não páram de tocar e a polícia não consegue solicitar todos os que requerem os seus serviços. Todos sabem que faltam agentes nas ruas, todos sabem que quando há assaltos e outros crimes raramente a polícia consegue estar em todo o lado. Já nem o Correio da Manhã noticia todos os delitos por se terem tornado tão banais. Só os que vivem nesses locais têm legitimidade para acusar, todos os outros que vivem longe da selva periférica de Lisboa que experimentem viver lá uns tempos e a sua opinião em relação à policia talvez mude.

Vou pesquisar neste blog se existem referências aos 30 agentes mortos em serviço nas ultimas duas décadas, os únicos cidadãos deste país que não costumam ter "advogados do diabo" do seu lado.

Quem não deve não teme, por isso todas as pessoas honestas e insuspeitas verão sempre a polícia como garante da sua segurança, nunca seus inimigos.

Joana Lopes disse...

A ambos, pergunto seguinte: alguma vez viram este, ou casos semelhantes, detalhadamente descritos pela comunicação social, quando essa descrição é profusamente feita ao mínimo desacato em qualquer bairro periférico? Já ouviram, pessoalmente, e fora dos ecrãs, pessoas que vivem nas Amadoras deste mundo, negras mas nascidas já em Portugal, perfeitamente integradas nas suas profissões, explicar como os seus filhos não brincam nas ruas por terem medo da polícia? Que olham com inveja para as crianças brancas? Eu já, conheço-as. Etc., etc., etc.
Há problemas graves nesses bairros? Como não haveria?
Quanto ao 2º anónimo, «policie» este blogue à vontade – tem alma para isso.

V. disse...

Muito bem, Joana, eu vivi muito anos junto a esses bairros, sei do que se fala, andei com essas crianças na mesma escola, na mesma turma, e tenho a dizer o seguinte:
1 - nem todas são inocentes, as crianças, pronto, essas são-no sempre, mas há adolescentes que simplesmente nunca conseguem, porque é muito difícil, sair do caminho pré-destinado (delinquência);
2- há pais que não deixam as crianças sair à rua por causa da insegurança precepcionada e não efectiva, que os media incutem nas pessoas;
3 - e a criminalidade que não entra nas estatísticas: quando tinha cerca de 12 anos fui assaltada nas portas de benfica e não reportei...mas nem por isso considerei o local inseguro;
4 - há boas e más pessoas em todo o lado, há bons e maus polícias em todos o lado, há bons e maus vizinhos...em todo o lado, mas devo ocnfessar que continuo a acreditar que criar guettos só piora a situação e atrasa o processo de integrassão social que os, agora nacionais de origem africana ou outra qualquer, requerem! Diviam ser integrados na sociedade e não permitir que se alojem em zonas ilegais, sem condições, sem nunca pagar um imposto, com problemas graves de saúde pública e de segurança...todo o processo esta incorrecto. Há quanto tempo existem bairros ilegais? Porque não se faz nada? O tráfico de droga é outra situação que nunca hei-de compreender... ha mais de 20 anos que se trafica droga ns mesmos locais...ela não nasce ali!

V. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Joana Lopes disse...

Não discordo de nada do que diz. V.
Só um apontamento: nem todos estes bairros são ilegais, são é cada vez mais periféricos porque os que o são menos encarecem. (Quem vivia na Brandoa mudou-se para longe na margem Sul, por exemplo.)
Não é fácil "integrar", como diz...

V. disse...

Se fosse fácil, outros países com mais recursos já o teriam feito e vemos o caso da frança, inglaterra, eua, etc... onde a pequena criminalidade está muito relacionada (directa ou indirectamente) com problemas de integração social. Os nossos imigrantes, nos anos 80', com a primeira geração, foram muito maltratados, à semelhança do tratamento que "lhes davamos" nas colónias, no entanto, esses foram os que apresentaram menos problemas. Estes começaram a surgir apartir da 2ª gerção de imigrantes, sem identificação com o país de origem dos pais, nem do país acolhedor... a partir daí foi um descalabro...estigmatizados pela cor, língua e cultura. No entanto, não quero considerá-los vítimas, não devemos vê-los como uns coitadinhos. Nós também sofremos muito quando emigrámos para frança, suiça, eua...e os resultados foram semelhantes. A partir da nossa 2ª geração de emigrantes os resultados também não são muito positivos... conheci desempregados que tiveram de mentir relativamente à morada para arranjarem emprego! É uma questão de atitude! As regras existem e têm de ser cumpridas! As políticas de gabinete continuam a proliferar nos orgãos de decisão, por isso nunca conseguiremos alcançar os objectivos. Não há participação sequer nos momentos eleitorais. Para mim, votar não devia ser um direito, mas uma obrigação! E nunca em partidos, mas nas pessoas!

Joana Lopes disse...

Ninguém diz que é fácil, V., e não é por terem mais recursos que os países o azem melhor ou pior.
A Europa está longe de ter ultrapassado o síndrome de colonizador - esta é uma das chaves do problema.

Helena Romão disse...

Ainda me lembrei de outro exemplo, que ficou gravado num disco ao vivo do José Mário Branco, em que ele muda uma das canções para fazer lembrar a cidade de Sacavém. Ficou gravada também a apresentação dele e a explicação do que motivou a alteração na letra: algum tempo antes tinha sido degolado um detido na esquadra de Sacavém. Não me lembro de quem era nem porque estava na esquadra, mas foi degolado.
Foi algures a meados dos anos 90.

Joana Lopes disse...

Lembro-me bem desse caso de Sacavém, Helena, Não sabia a história do JMB.