Partindo de um texto de Hannah Arendt, Luís Januário fala-nos de um grupo minoritário de judeus polacos de cultura alemã com «o denominador comum oculto» de «sempre se trataram como iguais – sem estender o tratamento a mais ninguém», numa «experiência basicamente simples de um mundo infantil em que se tomavam como pontos assentes o respeito mútuo e a confiança incondicional, uma humanidade universal e um desprezo quase ingénuo pelas convenções sociais e étnicas. O que os membros do grupo de iguais tinham em comum era aquilo a que podemos chamar gosto moral, algo muito diferente dos princípios morais».
E, daí, chega ao 15 de Outubro:
«Por vezes parece-me fácil: quando vejo os manifestantes deste 15 de Outubro, com quem desci uma avenida de Coimbra, por exemplo. Com alguns partilhei a infância. Outros são tão jovens que a trazem ainda consigo. E há na manifestação crianças e polícias barrigudos, mostrando que apesar de tudo se confia na democracia. O pacto social foi rompido há pouco e nas cidades de província ainda não houve tempo para aplicar as novas directivas. Só alguns jornalistas, pedindo sangue, mostram que já perceberam os sinais do tempo. Mas estes ruídos não me distraem da bondade da tarde. Um sol que acaricia, uma cidade deserta, ocupada por gente simples, que ainda não sabe desfilar. Não há agora, nas cidades de província, um lugar que represente o inimigo, onde se possa entregar um protesto ou uma petição. A câmara parece fechada para sempre. A esquadra da polícia perdeu a cor e confunde-se com as ruínas de uma torre que há 70 anos autoimplodiu. O governo civil foi extinto. Os bancos estão fechados e parecem descapitalizados. É como se a cidade tivesse perdido simultaneamente os seus habitantes conformados e o poder culpado. E este fosse um senhor feudal longínquo, que se conhece pela passagem frequente dos cobradores de impostos e uma aparição ritual nas cerimónias laicas. Ficam então estas caras que hoje parecem mais graves e com quem partilho um gosto moral. (…)
Temos de nos reconhecer, trocar sinais e de nos apoiar com abrigos wireless, alimentos, vinho, e iPads da última geração.»
Na íntegra AQUI.
P.S. - Já que o site do «i» está frequentemente offline por razões técnicas, coloco aqui o texto completo:
«O livro chama-se “Homens em Tempos Sombrios”. A edição portuguesa, da colecção Antropos, da Relógio D’ Água, vendia-se por 3 euros, há alguns anos, nos saldos que as editoras organizavam em algumas cidades. Como a edição é de 1991, os leitores devem ter sido, infelizmente, escassos. Na capa uma fotografia da autora, Hannah Arendt, numa reprodução de má qualidade. Não devia ter mais de 35 anos, nessa altura. Gosto dos olhos dela. Da metade sombria da sua face. Do contraste entre os lábios, que talvez se vão abrir para um sorriso, e a tristeza infinita dos olhos. As mulheres de quem gosto têm muitas vezes este rosto.
Hannah Arendt escreve curtas biografias iluminando fragmentos das vidas de homens e mulheres apanhados na vertigem do tempo entre as duas guerras de extermínio do século xx. No caso de Rosa Luxemburgo, a execução em Berlim, num dia de Janeiro de 1919 que inaugurava o triunfo da barbárie.
O texto sobre Rosa Luxemburgo é inspirado numa biografia de J. P. Nettl (“Rosa Luxembourg”, Oxford University Press, 1962).
É nesse livro, que Hannah não se cansa de elogiar, que surge a maior descoberta de Nettl, o grupo dos iguais, judeus polacos de cultura alemã, cujos padrões morais, na vida pública e privada, eram exclusivamente seus. Esses judeus, uma minoria extremamente reduzida, não pertenciam a qualquer categoria social, judaica ou não judaica, e assim escapavam a preconceitos convencionais, tendo criado nesse isolamento magnífico o seu código de honra próprio. O denominador comum oculto desses que sempre se trataram como iguais – sem estender o tratamento a mais ninguém – foi a experiência basicamente simples de um mundo infantil em que se tomavam como pontos assentes o respeito mútuo e a confiança incondicional, uma humanidade universal e um desprezo quase ingénuo pelas convenções sociais e étnicas. O que os membros do grupo de iguais tinham em comum era aquilo a que podemos chamar gosto moral, algo muito diferente dos princípios morais, conclui Hannah Arendt.
Um gosto moral comum que nos permita tratar por iguais – que programa!
Por vezes parece-me fácil: quando vejo os manifestantes deste 15 de Outubro, com quem desci uma avenida de Coimbra, por exemplo. Com alguns partilhei a infância. Outros são tão jovens que a trazem ainda consigo. E há na manifestação crianças e polícias barrigudos, mostrando que apesar de tudo se confia na democracia. O pacto social foi rompido há pouco e nas cidades de província ainda não houve tempo para aplicar as novas directivas. Só alguns jornalistas, pedindo sangue, mostram que já perceberam os sinais do tempo. Mas estes ruídos não me distraem da bondade da tarde. Um sol que acaricia, uma cidade deserta, ocupada por gente simples, que ainda não sabe desfilar. Não há agora, nas cidades de província, um lugar que represente o inimigo, onde se possa entregar um protesto ou uma petição. A câmara parece fechada para sempre. A esquadra da polícia perdeu a cor e confunde-se com as ruínas de uma torre que há 70 anos autoimplodiu. O governo civil foi extinto. Os bancos estão fechados e parecem descapitalizados. É como se a cidade tivesse perdido simultaneamente os seus habitantes conformados e o poder culpado. E este fosse um senhor feudal longínquo, que se conhece pela passagem frequente dos cobradores de impostos e uma aparição ritual nas cerimónias laicas. Ficam então estas caras que hoje parecem mais graves e com quem partilho um gosto moral. O senso moral, uma das boas fadas de Steven Pinker, que na história lutam contra a violência, mas melhorado porque cresceu desordenadamente com uma inseparável dimensão estética. Com alguns e algumas partilho Bon Iver e Mark Lonegan, com outros Neil Hannon e os Divine Comedy, com outros ainda Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, Sangue do Meu Sangue, a poesia de Ruy Belo, uma fotografia de Daniel Blaufuks. Um gosto moral. Agir como se acreditássemos que os olhos de alguns gatos viram deus, que a água, o ar e a terra são bens comuns, a propriedade é um roubo e devemos procurar a beleza ou pelo menos a ideia da beleza. Nunca nos resignaremos ao destino de Anna Karenina, nem perdoaremos aos que guilhotinaram Olympe de Gouge. Não seremos culpados do pecado original e venderemos sempre a alma pela sabedoria, ao Diabo ou à FCT. Não esqueceremos que os inocentes penavam até há pouco no Purgatório, Dreyfus foi condenado mas batemo-nos pela sua reabilitação, Bartolomeu de las Casas descreveu, para nossa redenção, as atrocidades do colonialismo e ainda não reparámos a humilhação do Gungunhana exibido na capital do império.
Rosa foi presa e levada da prisão para um destino atroz. Conduzida pelos fanáticos do Korpsfrei num carro, através das ruas geladas de Berlim, foi torturada, baleada, agrilhoada e atirada ao canal Landwehr. O cadáver só reapareceria seis meses depois e apenas no final do século se percebeu que o governo fora cúmplice dessa ignomínia.
Hannah Arendt disse de Rosa Luxemburg que, se ela não se tivesse afastado das suas origens, abandonado os iguais, não teria ficado tão desarmada nesses tempos sombrios.
Temos de nos reconhecer, trocar sinais e de nos apoiar com abrigos wireless, alimentos, vinho, e iPads da última geração.»
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