@João Abel Manta
«A questão é que a Europa, enquanto existiu como projecto, só funcionou para a burocracia e as directivas que favoreciam os interesses dos muito grandes e gananciosos. A Europa, que agora quer proibir o défice excessivo nas constituições, nunca emitiu directivas a proibir a pobreza, o desemprego, a indigência, ou a mandar transpor para a ordem interna dos países o bem-estar e o desafogo. E depois, por motivos meramente estratégicos, juntou num mesmo continente conteúdos tão diversos e tão distantes como a Noruega e a Bósnia-Herzegovina, a Suíça e a Bulgária, ou até mesmo o Luxemburgo e Portugal. A coesão não passou de um ‘slogan' e o Luxemburgo tem um poder de compra médio que representa mais do triplo da média do poder de compra dos portugueses. E Portugal, que o salazarismo reduziu a uma horta estagnada e a contra-revolução a uma quinta de compadres, entrou para o clube – primeiro da Comunidade Europeia, depois do euro – sem condições para pagar a jóia e malbaratando os fundos europeus.»
João Paulo Guerra, Pobreza *****
«Quando se repete que "vivemos acima das nossas possibilidades", não se está só a apresentar uma análise económica, valha ela o que valer. Está-se também a assumir um juízo moral, e um juízo moral que historicamente sempre acompanhou o fenómeno da dívida. Porque a dívida instalou-se na cultura ocidental, e de um modo cada vez mais constante e avassalador, desde que se privilegiou de um modo absoluto a relação com o futuro, concebendo-o como um horizonte que acolhe e compatibiliza todas as promessas e expectativas, por mais contraditórias ou inviáveis que fossem.
Foi isso que, antes de todos, percebeu Nietzsche, o mais visionário dos filósofos do século XIX. Foi no segundo ensaio do seu livro A Genealogia da Moral, de 1887, que ele perspicazmente sugeriu que a sociedade não resulta da troca económica (como pensaram A. Smith ou K. Marx), nem assenta na troca simbólica (como viriam a defender as perspectivas antropológica ou psicanalítica), mas que ela se organiza a partir do crédito. Ou mais precisamente, da relação credor-devedor.»
Manuel Maria Carrilho, A dívida e a culpa*****
«Quando estão no poder, as esquerdas não têm tempo para reflectir sobre as transformações que ocorrem nas sociedades e quando o fazem é sempre por reacção a qualquer acontecimento que perturbe o exercício do poder. A resposta é sempre defensiva. Quando não estão no poder, dividem-se internamente para definir quem vai ser o líder nas próximas eleições, e as reflexões e análises ficam vinculadas a esse objectivo. (…)
O movimento dos indignados e do occupy recusam a expropriação da democracia e optam por tomar decisões por consenso nas suas assembleias. São loucos ou são um sinal das exigências que vêm aí? As esquerdas já terão pensado que se não se sentirem confortáveis com formas de democracia de alta intensidade (no interior dos partidos e na república) esse será o sinal de que devem retirar-se ou refundar-se?»
Boaventura Sousa Santos, Terceira Carta às Esquerdas
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