22.12.11

Farta


Parecerá lugar-comum mas não é: há muito que um texto não me calava tão fundo como o que Luís Januário publicou ontem no jornal «i». Sobretudo porque estou farta, fartíssima, de ver condenar, banir e ridicularizar tudo o que possa ser, ou parecer, referência a qualquer tipo de «utopias». Quem ouse sequer mencionar a palavra é atirado para o inferno de culpas de todos os males a serem punidos e arrumados para todo o sempre na prateleira dos malefícios da História. Como se o passado paralisasse o futuro neste domínio e esgotasse antecipadamente qualquer hipótese não malévola de acreditar que não estamos condenados a este «tardocapitalismo» que nos desgraça. Como se não fosse obrigatório ir vivendo o dia-a-dia «utopicamente». Tudo em nome do medo do dia de amanhã (como seria bom que fosse igual ao de ontem…), das inevitabilidades, do mal menor, dos consensos e das convergências com as suas indiscutíveis virtudes. Em nome do pavor de males maiores, remenda-se, recua-se, assusta-se e lastima-se. Ou, em alternativa, assobia-se para o lado e fala-se do sexo dos anjos.

Por tudo isso, guardarei como um tesouro este excerto da crónica do Luís:

«Finalmente a solidariedade. Baseada no individualismo e num utopismo pós-histórico. Chamemos-lhe já um paratopismo pós-histórico, porque nos chamarão utópicos os que nos querem conformar com a miserável realidade que preparam e por isso melhor será que nos antecipemos na designação. A nossa paratopia considerará as utopias históricas perigosas e construirá respostas limitadas e de mínima dimensão.

Se as respostas globais falharam, é preciso deixar ao tardocapitalismo a ilusão global. Ocupar-nos-emos dessas infinitas mínimas coisas, sem ambição total, deixando os governos, a sua corte e os seus beneficiários a falarem sozinhos num terreno queimado e cada vez mais rarefeito. Seremos monges e monjas e se for caso disso mendicantes, mas sobreviveremos ou hão-de sobreviver os nossos livros, as nossas cabanas, como a cabana de Walden, onde Thoreau pensou a desobediência civil, a nossa música, as esculturas de madeira talhadas como as figuras de Baselitz, com gorros onde se lê ZERO e relógios nos punhos assinalando a hora quase final em que escrevemos estas crónicas.»
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