18.3.12

A crise académica, 50 anos depois — e agora?



Um importante texto de Jorge Sampaio, Secretário-Geral da RIA (Reunião Inter-Associações) em 1961/1962, publicado ontem no Expresso (sem link). 

Comemora-se agora a o cinquentenário da crise académica de 62. Seria, porém, redutor ficarmos no agridoce conforto de nostalgias, pois essa data – e o que significou – pede-nos sobretudo a pedagogia de um inventário e o dever de um testemunho. E isto porque, ao olharmos para trás, voltamos a sentir que essas foram horas de aprendizagem de vida e de cidadania, de múltiplos desafios, de inevitáveis testes de carácter. Mas foi também um raro momento de unidade, em que muitos descobriram como construir o triunfo da razão sobre a força, ou da justiça sobre a prepotência. 

Vale, por isso, a pena assinalar, sobretudo junto das novas gerações, alguns fundamentos de uma crise académica que lhes parecerão anacronicamente absurdos. Quando em março de 1962 se procurou comemorar o dia do estudante, o regime escondia mal as feridas acusadas pela perda de Goa, pela insurreição em Angola, pelo frustrado assalto ao quartel de Beja, e por vários indícios de desgaste postos a nu pela falhada tentativa do general Botelho Moniz. Tudo isto se começava a refletir numa nova dinâmica do movimento associativo que, em Lisboa, congregava mais de uma dúzia de associações e organismos autónomos, coordenados por uma estrutura informal - a RIA (reunião interassociações). O ato da inauguração do edifício da reitoria dera já um sinal: coubera-me não aceitar, como representante dos estudantes, a censura ao texto que me propunha ler, o que motivaria a ausência institucional do corpo discente na cerimónia. A posterior proibição do dia do estudante atuou como faísca, ao mostrar a face arbitrária do governo, a arrogância do seu comportamento pela recusa do diálogo e pela desautorização do reitor, num atropelo à então débil autonomia da universidade. Depressa se abriram as portas da crise: encerramento de instalações, presença e repetidas cargas da polícia de choque na cidade universitária, maciças concentrações de protesto de estudantes no Estádio Universitário (a que inesperadamente se juntaria o reitor Marcelo Caetano) e na Alameda da Universidade, um justamente famoso jantar de confraternização de estudantes e alguns professores, por convite pouco antes feito pelo reitor devido ao fecho da cantina, o qual originaria nova carga e consequentes correrias. De tanta inabilidade de um governo acossado, surgiria uma inédita unidade de estudantes e professores: demissão do reitor e dos diretores da Universidade Clássica; comunicado do Senado (apenas formado por docentes) defendendo a autonomia universitária; e a decisão, com o magnífico apoio de Coimbra, de iniciar o luto académico. A crise, entre recuos, faltas de palavra e endurecimento do governo, persistiria até julho, e, na barricada universitária, as associações, sob a coordenação da RIA, iriam atravessar dias arrebatados, numa febril cooperação e capacidade organizativa cuja eficácia ainda hoje me surpreende. Foi um tempo repartido por reuniões pela madrugada fora; pela desmontagem das notas oficiosas através de comunicados informativos que a PIDE nunca conseguiu calar; por experiências de alguma incipiente clandestinidade e encontros vagamente conspirativos; pela mobilização de apoios de intelectuais e artistas; e, para vários, o primeiro contacto com a prisão. 

Que pedíamos, afinal? Um diálogo sobre a liberdade de pensamento e ação; a real autonomia das universidades; a revogação do estatuto universitário castrador do livre associativismo; um acesso à universidade sem discriminações económicas, políticas, religiosas ou rácicas; uma orgânica universitária com presença dos alunos nos órgãos de gestão.

Passados estes 50 anos, podemos orgulhar-nos de ter encetado a defesa de um caminho que sabíamos se encontrava do lado certo da história. Os fundamentos essenciais dessa universidade que havíamos sonhado são hoje, afinal, os pilares que as instituições universitárias defendem como cioso património, por deles depender a sua manobra de ajustamento a um mundo asperamente mutável e competitivo. Como antes pressentíamos, é num quadro de real autonomia que as universidades poderão hoje dar resposta efetiva aos desafios inéditos que implicam um inevitável espírito de mudança e de autoavaliação das suas debilidades ou omissões. Novo, e decerto difícil, é este seu caminho, a exigir o repensar de orgânicas internas e ofertas educativas, e a requerer coragem decisória, de que a programada fusão de duas universidades de Lisboa é exemplo a merecer aplauso. Porque só assim poderão construir a sua posição no seio do universo universitário global, e contribuir, como responsáveis fontes de saberes e de produção de conhecimentos, para a adequada formação e sentido empreendedor dos recursos humanos ao seu cuidado e, também, para o acompanhamento inteligente e solidário dos próprios problemas nacionais. 

Há 50 anos, separava-nos da livre Europa um regime cada vez mais isolado na sua teimosa resistência à realidade histórica. Olhávamos, então, com inveja para a outra Europa que começara há pouco o seu projeto de integração, paz e prosperidade. A ela chegaríamos uma vez alcançada a democracia, e hoje nela partilhamos as angústias de uma crise que põe em risco os fundamentos políticos e éticos da mais relevante iniciativa diplomática dos nossos dias a que tanto aspirámos. E isto porque aos seus inquietos cidadãos as instituições da UE têm oferecido um arrastado acervo de omissões, fragilidades decisórias e duvidosas terapêuticas conjunturais desprovidas de uma tranquilizadora visão de futuro. Em vez dos equilíbrios fundadores assiste-se ao enfraquecimento do método comunitário a favor de iniciativas intergovernamentais; abrem-se brechas nos equilíbrios do triângulo institucional, com acentuada perda do antigo peso de iniciativa da Comissão; deixa-se instalar no discurso dos seus líderes a imagem de divisão entre um norte supostamente virtuoso e um sul irresponsável; pouco se tem feito para evitar a erosão do antigo relacionamento gerador de consensos. Perante este cenário de declínio face aos novos polos do poder mundial, importa lutar para que uma lúcida vontade política saiba criar no espaço europeu uma perspetiva de futuro, através de políticas que, a par da necessária estabilização orçamental proteja de recessões, promovendo programas de crescimento, nomeadamente através de uma renovada e dinamizadora alocação de fundos estruturais; por uma crescente harmonização fiscal que atenue os atuais nichos diferenciadores; pelo estabelecimento de uma real barreira protetora dos Estados-membros sob o frio ataque dos mercados financeiros; por uma ação mais liberta de constrangimentos do BCE. Decerto que tudo isto é complexo. Mas atrevo-me a pensar que nenhum responsável político queira ficar na história como não tendo sabido impedir a fratura de um projeto que trouxe paz a um continente atravessado séculos a fio por egoísmos nacionais, rivalidades e guerras suicidárias. 

Olho de novo para trás e para o tempo que hoje celebramos. Insensivelmente, chegam-me rostos, alguns de amigos já desaparecidos, inflamadas discussões, entusiasmos, receios, uma ou outra utopia. Procuro lembrar a extensa contabilidade dos colegas a que a repressão interrompera a normalidade das suas vidas: expulsando das universidades, detendo, embarcando para a guerra colonial ou forçando ao exílio. Bem como, afinal, os momentos vividos há 50 anos, pois deles ficaram amizades, lições e a certeza de que fizemos algo de útil. 
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