(Paula Godinho na Facebook)
As mulheres não podem estar paradas, salvo se forem ricas. As proprietárias podem ficar nas suas casas, nos seus pátios interiores, rezarem muito, resguardarem-se do sol e terem a pele branca. Estão preservadas dos perigos dos campos, de tornar as águas nos lameiros pela noite fora, no Verão, de atravessar encruzilhadas onde todos os males podem sobrevir. As lavradoras pegavam na rabiça do arado como agora montam num tractor, gritavam aos bois no final dum rego e, sobretudo depois dos homens terem partido para fora, lançavam a semente à terra, rogavam para que o ano fosse farto e as trovoadas escassas, punham mãos à obra na ceifa, faziam a acarreja e contratavam a malhadeira. Cumpriam todo o ciclo do pão, se fosse preciso, orgulhando-se algumas de não precisarem de ajuda para pôr o saco do grão em cima dum macho e levá-lo até ao moinho. Pagavam a maquia, traziam a farinha de volta, amassavam e benziam a massa e punham-na no forno. As jornaleiras, que não tinham terras próprias, faziam tudo isto por escasso pagamento, de sol a sol e podiam começar com cinco ou seis anos como pastoras ou criadas em casa alheia. Trabalharam arduamente em França, no ménage ou nas fábricas, como agora em Espanha, a servir à mesa ou no serviço doméstico. Outras estudam mais que os rapazes do seu tempo, prosseguem pelo ensino secundário, pelo politécnico e pela universidade, mas é raro que alcancem posições de chefia.
As mulheres não podem estar paradas e de pequenas lho ensinavam. Antes, depois ou em vez da escola, o trabalho da casa, o cuidado dos irmãos e dos avós idosos, o acompanhamento do ciclo do linho, fiar e tecer a lã. Na matança do porco aparam o sangue, lavam as tripas e preparam o fumeiro. Limpam a casa, lavam a roupa, acodem aos seus velhos, como fez anos a fio uma mulher de Ifanes à sua mãe acamada, que clamava de noite com medo das trevas e da morte. Fazem a comida todos os dias, antes um caldo com um pouco de unto ou uma sardinha para três, agora mais abundante e variada. Vão ao rebusco da castanha e da azeitona, recolhem cogumelos e merujas. Antes dos dias de festa amassam folares com muitas gemas e carne de porco, fazem económicos e matrafões, aproveitam os frutos maduros para compotas e licores.
As mulheres não podem estar paradas, e é assim pelo ciclo da vida. Entreajudavam-se no parto com uma sabedoria empírica, como a da tia Sardinha de Vale de Pena, que pedia às mulheres que soprassem numa almotolia para aguentarem o trabalho que dá fazer nascer um filho. Quando pariam ficavam recluídas e demoravam mais tempo a purificar-se para serem aceites na igreja se tivesse nascido uma menina. Enterravam bem fundo a placenta, para que nenhuma animal a desenterrasse e faziam o mesmo com o cordão umbilical mumificado. Cantavam aos filhos de sono arredio e lastimavam a perda precoce do leite. Perderam, no passado, filhos a fio – o coro de anjos que lhes servia de consolo quando um dia elas próprias morressem. A sua impureza menstrual interditava-as de fazer o pão ou encher chouriças. Adoeciam com mal de madre. Cozinhavam os manjares cerimoniais dos casamentos, faziam as talanqueiras e distribuíam os entremoços nas aldeias de Vimioso. As festas de raparigas, com assumido protagonismo, foram escassas e a-periódicas. Salvo em Vale de Lamas, no passado raramente conseguiram o estatuto que hoje em Deilão ou em Ousilhão conquistaram: estar de corpo inteiro nas festas. Em Rio de Onor terá havido uma vez uma comezaina só de mulheres casadas, mas não temos deste lado da fronteira equivalentes às cerimónias em honra de Santa Águeda. Levavam longe a submissão quando maltratadas, raramente irradiando um marido agressor. Viúvas precoces com filhos pequenos punham mãos à obra. Como uma mulher de Varge, que contava histórias de lobos que abriam alas para que passasse, condoídos da sua situação de mãe que tinha que ir ao contrabando para sustentar os filhos. Podiam afundar-se na inveja, dizerem-se alvo de mau-olhado e procurar a benzedeira ou o médico. Se seguirem a vida religiosa, jamais a hierarquia católica permite que sejam protagonistas numa missa. Os sinos tocavam um número par de badaladas quando uma mulher morria. Lavavam e vestiam os mortos, choravam-nos e visitavam o cemitério, enfeitavam as campas no dia de Finados e rezavam o terço.
As mulheres não podem estar paradas. As que vemos nesta foto já não precisariam de ter as mãos ocupadas. Hoje, as curtas pensões de reforma ajudam na velhice, mas como eliminar o que é um hábito de toda a vida? Por isso, estas três mulheres, na sombra dum fim de tarde do Verão de 2009 em Freixo de Espada à Cinta, entre o Douro e o Sabor, não param. Quando eram raparigas fizeram o enxoval, prepararam as coisas da casa que pelas construções de género cabem às mulheres. Agora, há sempre filhas, netas, bisnetas à espera duma colcha ou duma cobertura de camilha, dum naperon de cozinha ou doutros lavores em que são peritas. Ocupam o espaço da rua, juntam-se a algumas vizinhas neste repouso ocupado, vêem quem passa, comentam as vidas locais e das personagens das novelas televisivas. Assustam-se com o futuro dos netos e com a pandemia de gripe. Laçada atrás de laçada, prosseguem o croché na tarde quente de Julho. As mulheres não podem estar paradas.
Paula Godinho
Penedo, Julho de 2009
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2 comments:
Cara Joana Lopes
Neste dia que ainda nos diz muito, não podia deixar de lhe mandar uma saudação muito especial.
Desculpe, mas hoje mando um beijinho.
Rodrigo
Muito obrigada, Rodrigo!
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