25.5.12

À Espera de Gustavo



Um texto de Rita Veloso.

Ana Maria estava nervosa. Era dia de o Aurélio voltar para casa e ela aguardava o seu telefonema para lhe dar sinal de que a zona estava segura. Desta vez, não era necessário pendurar panos na janela ou ir marcar árvores pré-estabelecidas. Bastava ele telefonar e ela dir-lhe-ia que o Gustavo viria jantar. Não sei se o jantar da senha tinha data prevista, se bastava isto:

— «O Gustavo vem cá jantar.»

Ana Maria e Aurélio Teixeira de Barros eram os nomes que constavam nos seus BI falsos. Era fácil, na altura, conseguir um BI com uma identidade nova. À volta do Arquivo de Identificação havia sempre gente a quem se podia pagar (dois contos, seria?) para servirem de testemunhas. Bastavam duas pessoas que garantissem que nos chamávamos assim, que tínhamos nascido ali, naquele dia e daqueles pais, que morávamos acolá, que éramos casados. Ana Maria Teixeira de Barros. Muitos anos mais tarde, já depois do 25 de Abril, ainda o meu pai lhe chamava Ana Maria. Dos vários nomes que teve, este foi o que se aguentou mais tempo. Às vezes ouvíamo-lo começar, numa ponta da casa: «Ó, ó, ó...» O hábito era mais forte. Já nem ligávamos, todas sabíamos que era por ela que ele chamava. «Ó...» Ainda hoje, se oiço alguém gritar «Ó...», olho em volta à procura dela. A minha mãe só soube o verdadeiro nome dele em 1969, com a emersão forçada da clandestinidade. Conheceram-se sete anos antes. A casa dela e do marido era uma das muitas casas de apoio do Partido. Deram-lhe guarida. Pouco tempo depois, ela divorciou-se e mergulhou na clandestinidade com aquele homem de quem nem o nome sabia.

— «Tu nasceste na clandestinidade» — explicava-me, quando me contava a minha pré-história, cheia de mudanças de casa, fugas, algumas perseguições. Aos oito anos, fiz uma troca com uma colega da primária: ela ensinava-me o que era uma prostituta, eu ensinava-lhe o que era a clandestinidade. Imensamente esclarecida, fiquei a saber que uma prostituta era uma mulher que se vendia por dinheiro. O que vendia e se haveria outras formas de pagamento, não percebi. A minha colega não ficou melhor. A clandestinidade era o prédio (secreto) onde viviam os comunistas. Tirando aquele complemento circunstancial de lugar — «tu nasceste na clandestinidade» —, nada explica a minha definição. Vivíamos no isolamento quase total, num universo de quatro, como nos desenhos infantis, mamã, papá, eu e a mana, com raríssimas incursões às casas dos vizinhos que partilhavam o famigerado prédio (raríssimas e às escondidas do meu pai, claro está, senão lá teríamos de nos mudar outra vez).

Apaixonaram-se sem ela saber o nome dele nem qualquer pormenor da sua vida que não o ser um clandestino comunista, grande, bruto, mordaz e inteligente, que gostava de Pessoa, e com um olhar incisivo que mostrava que já tinha percebido o que estávamos a sentir ou a pensar, ainda antes de nós nos apercebermos de que sentíamos ou pensávamos fosse o que fosse. Bastou. Quando estava grávida, ele sugeria-lhe nomes para os filhos. Muitas vezes desconfiou de que ele ia buscar aqueles nomes horríveis à família e que pelo meio estaria o dele. É bem possível.

Ficava sempre nervosa nos dias de regresso do Aurélio. Apurava o ouvido, a tentar detectar a motorizada, qualquer barulho inesperado a deixava alerta. Podia vir ele, podia vir a PIDE. Não que achasse que ele vergasse na tortura, mas não era só dele que dependiam... O Verdial tinha sido preso havia uns tempos e uma das casas que denunciou foi a deles. Por sorte, tinham-se mudado uns dias antes, pela simples coincidência de ela se ter cruzado na rua com um antigo controleiro, o que quebrava a segurança da casa. Daquela vez, antes da motorizada tinha de vir o telefonema. E já tardava. Não sabia o que fazer às mãos, tudo lhe caía. Manteve a rotina com as miúdas, refeições, banhos, brincadeiras. Uma com cinco anos, outra com dois e meio, não podia sequer desabafar. Ligou a televisão para se distrair.

Era já de noite e as miúdas dormiam; entretinha-se com uma qualquer tarefa doméstica, quando, numa peça de teatro que passava na televisão, ouviu:

— «O Gustavo não vem.»

Não teve dúvidas sequer. Não era mais supersticiosa do que qualquer um, mas nesse momento soube. Soube que tinha de sair dali e de nos pôr em segurança. No dia seguinte, livrou-se do que pudesse ser comprometedor, emalou o essencial e fomos procurar refúgio na quinta de uns amigos, nos arredores de Lisboa. A mala incluía apenas duas ou três recordações de sete anos em comum: alguns livros do Pessoa e o «Aureliano», do Aragon, onde eu imagino que o meu pai se tenha inspirado para escolher o seu nome falso. Enquanto entrouxou sete anos e nas longas semanas que se seguiram, ouvia permanentemente o Bécaud a cantar-lhe ao ouvido.

«Et maintenant que vais-je faire 
De tout ce temps que sera ma vie 
De tous ces gens qui m'indiffèrent 
Maintenant que tu es partie»

A história deste dia na vida da minha mãe, ouvi dezenas de vezes, a propósito disto ou daquilo. O meu pai nunca nos contou como foi o dia dele. Soube (pela minha mãe? Por amigos dele? Por ele, a contar a amigos? Não sei dizer) que foi preso numa reunião do C.C., juntamente com os «comparsas», e que adormecera pouco depois de chegar à prisão, para frustração da PIDE, amesquinhado que ficou o terror da tortura para que já esfregava as mãos. Um dia encontrei este relato, numa carta escrita em Peniche, no dia em que fez dois anos que foi preso. Infelizmente, o pragmatismo da minha mãe levou-o a reescrever uma carta inicial, sintetizando o dia em sete linhas. A original, mais desenvolvida, deve ter ido parar à lixeira da prisão. Mesmo assim, a sua personalidade analítica e a sua escrita irónica constroem um testemunho que vale a pena. Pelo menos para mim.

«Esta é uma segunda carta. A primeira tenho-a para ali. (...) Já não sei bem como — e não gosto de reler-me — encontrei-me a descrever-te as primeiras horas da manhã deste dia 25 de Maio, mas em 1969; de como as coisas se foram reflectindo na minha cabeça, com uma lucidez, uma calma e também uma coragem de que no próprio momento se vai tendo consciência e espanta; de como as coisas se sucederam, levemente teatrais, às vezes sarcásticas, às vezes violentas, um pouco ridículas como todas estas coisas são, sempre muito tensas, até que – na posição mais incómoda, com espanto geral de todos os comparsas, no auge da tragédia (1.º acto) – adormeci profundamente como um justo. Depois tombara na indesculpável patetice de te contar um pouco destes 730 dias... Reli-me. Ouvi-te a falar-me de retórica, dos disfarces, da autenticidade. Finquei o olhar neste espaço fechado que me cerca e fui concluindo que era forçoso dar-te razão, que nada daquilo te poderia interessar senão muito literariamente (coisa que não sou) e que se impunha para nós ambos escrever-te uma outra carta. É esta.»


(Imagem daqui.)
.

6 comments:

Anónimo disse...

Nunca fiz parte dessas coisas, apesar de ter vivido bem perto delas, de ter falado com pessoas que eram assim, mas que eu, ao tempo, não sabia e só por ignorância minha. Também sei que os olhos se me abriram de espanto, quando soube muitas coisas, inclusivamente que não sabia sequer somar 2+2. Sempre fui pouco esperto para as coisas que me rodeiam.
Mas tal como quando "descobri" tudo, ainda hoje me comovo com estas coisas em particular.

PS: uso a palavra coisas sem aspas, porque a palavra é absolutamente honesta. Pena é que haja tipos que a usem sem saber disso e a emporcalhem.

Simão Gamito

Anónimo disse...

«grande, bruto, mordaz e inteligente, que gostava de Pessoa, e com um olhar incisivo que mostrava que já tinha percebido o que estávamos a sentir ou a pensar, ainda antes de nós nos apercebermos de que sentíamos ou pensávamos fosse o que fosse» - precisamente isto. Cá em casa, AV era referido por um outro nome, a lembrar a força, a sensibilidade e o carinho. Restos da amizade da juventude. A sua sua sugestão era uma ordem para o JT.
Comovi-me muito com este texto: não é da idade, é que me comovem sempre as descrições discretas do heroicismo discreto e anónimo, de que estavam impregnados algumas situações, e que caracterizaram certos homens e mulheres da Resistência na Ditadura. Esta bela escrita traz-nos à memória o que foi o fascismo. Mas, sobretudo, a dimensão humana, pessoal, do quotidiano enclausurado da vida familiar na clandestinidade. A mim, tocou-me particularmente a recordação de um homem de excepcional estatura moral. Como poucos. Tenho para mim que nunca lhes será feita a homenagem que merecem. (Anda se discute se em Portugal houve fascismo!)
Um grande beijo, Rita
HP

Unknown disse...

Obrigada, HP!
Fiquei curiosa: que nome lhe davam vocês? :)
Não quis alongar-me nos adjectivos, mas «sensível» e «carinhoso» chegaram a estar escritos... Ditos por uma filha são sempre redundantes, acabei por tirar... Foi bom que o HP os tivesse acrescentado, agora sem suspeição, seguidos de um tributo merecido.

Anónimo disse...

Rita, vou deixar-te o "nome"/pseudónimo em mensagem no fb. Faz parte de uma área de intimidade do grupo de amigos dele da juventude, que não quero expôr... Beijinho, Rita
HP

jlruivo disse...

A Detenção
Detenção!!! Será necessário dizer que isso representa uma viragem brusca em toda a sua vida? Que é como a queda a pique de um corisco sobre a sua cabeça? Que é uma comoção espiritual insuportável, a que nem todas as pessoas podem adaptar-se, e que frequentemente leva à loucura?
O universo tem tantos centros quanto os seres vivos nele existem. Cada um de nós é o centro do mundo e do universo, e ele desmorona-se quando alguém nos sussurra ao ouvido: "Está preso!" (...)
- Eu??? Porquê???
Pergunta repetida milhões e milhões de vezes antes de nós, e que nunca obteve resposta.

Não é de 1969, mas próximo: 1973.
Prémio Nobel "desconhecido"

Unknown disse...

Olá Rita,
Como sabes convivi bastante com o teu pai.
Acho que se tem de acrescentar algo mais ao "grande, bruto..." ele era também de uma grande ternura e sensibilidade. E essa ternura, essa sensibilidade, eram autênticas.
Só um pormenor, acho que não foi preso numa reunião do CC,mas do Comite Regional, numa casa que tinha sido denunciada... creio que tu sabes por quem.
abraço
Vasco