Elísio Estanque divulgou, no Facebook, o texto da sua crónica no Público de ontem (sem link). Suficientemente importante para que eu a divulgue também aqui.
A nova legislação laboral que acaba de entrar em vigor assenta num conjunto de premissas bem ilustrativas da mentalidade dominante entre a atual classe dirigente. Pensando nas grandes linhas orientadoras do mais recente pacote legislativo e na ideologia em que assentam é possível vislumbrar, sem ironia, uma versão sui generis da vulgata marxista-leninista na sua versão mais ortodoxa. As principais medidas adotadas, tais como a redução dos custos do trabalho, a facilidade de despedimento, os cortes nas indemnizações, os bancos de horas, o layoff, a redução de feriados e pontes, a punição dos faltosos, etc., etc., deixam transparecer a sensação de que a atual maioria levou ao extremo o princípio da luta de classes entre trabalhadores e capitalistas, só que, vista ao contrário, isto é, sob o prisma do mercantilismo selvagem do século XXI.
Com efeito, é possível que o pano de fundo desta nova “cartilha” se tenha inspirado na velha ideia de Marx segundo a qual é impossível a conciliação de interesses entre as duas classes antagónicas. Será a resposta da burguesia ao proletariado revolucionário e aos movimentos republicanos de há cem anos atrás? Será uma vingança do capital e da direita contra os “privilégios” e “mordomias” alcançadas pelos trabalhadores no período do PREC?. A matriz produtivista que inspirou o legislador do novo Código do Trabalho só não advoga o regresso às fábricas “satânicas” dos tempos da Revolução Industrial (das 16 horas de trabalho diário, sete dias por semana) porque elas não são mais necessárias, graças à economia digital, aos call centers, ao teletrabalho e a toda a panóplia de tecnologias que hoje permitem assegurar formas de servidão mais discretas e mais eficazes.
Acresce que, como se sabe, os anteriores modelos produtivos como o taylorismo, o fordismo e o toyotismo foram experiências falhadas. E falharam, acima de tudo, porque cederam aos desvios “revisionistas” da linha liberal-social, enveredando por uma tentativa de conciliação de interesses, que só serviu para atrapalhar a cadeia lucrativa. A empresa não pode mais ser um espaço de negociação ou de convenções coletivas, fundadas no “compromisso de classes”. Inclusive, instituições internacionais como a OIT, que ao longo de anos lutou pelo chamado trabalho digno, têm de ser fortemente denunciadas em nome do trabalho-mercadoria. Nesse sentido, exemplos como o da Autoeuropa – onde se chegou ao ponto de admitir representantes dos trabalhadores na administração e aceitar a comparticipação nos lucros – não passam de meros focos de resistência de um modelo de gestão sem bases científicas e sem futuro. Como a “responsabilidade social” se tornou um princípio supérfluo (o mesmo destino a que está votado o próprio Estado social), entendeu, e bem, o atual poder que a era do diálogo e do consenso está ultrapassada. Que é tempo de reassumir a divisão natural entre o mando e a obediência.
Recuperando, em adaptação livre, a teoria de um ex-intelectual orgânico da classe capitalista – entretanto caído em desgraça, porque foi assaltado por uma série de dúvidas –, pode dizer-se que a luta é agora entre os “descomplexados competitivos” e os “preguiçosos coletivistas”. As novas leis do trabalho são, portanto, o resultado de uma luta persistente dos primeiros contra o conservadorismo coletivista dos segundos (e contra o vírus sindical, que está moribundo mas não morto), visando a generalização do trabalho forçado, isto é, criando um amplo exército de famintos, uma nova força de trabalho disponível para o trabalho gratuito, que começa a emergir dos destroços da atual classe trabalhadora. Em vez da busca de compromissos que, desde o século XIX, o capitalismo industrial tentou estabelecer entre capital e trabalho, a linha dura que esta nova “internacional liberal” fortemente apoiada no capitalismo financeiro fez aprovar (e que, naturalmente, o governo português foi dos primeiros a subscrever), retoma a velha ideia do “trabalho mercadoria” como primeira prioridade a caminho do “Sol nascente” do hiperliberalismo competitivo.
Em suma, os atuais desempregados de longa duração, os precários sobrequalificados que se recusem a emigrar, os beneficiários do RSI que se revelem pouco produtivos no trabalho comunitário, assim como os vagabundos e demais segmentos “preguiçosos”, serão definitivamente arredados para fora do sistema social, engrossando esta nova subclasse dos “pau-para-toda-a-obra”, prontos para o rápido enriquecimento dos seus amos. O princípio é este: de cada um segundo as suas capacidades, até à exaustão; a cada um segundo a sua subserviência devota ao capital. Eis o sonho colorido do liberalismo radical: o regresso do trabalho escravo.
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