29.10.12

Em 29/10/1936, a chegada dos primeiros presos ao «Campo da Morte Lenta», no Tarrafal



Eram 152 e tinham partido de Lisboa onze dias antes. Uns tantos haviam participado no 18 de Janeiro na Marinha Grande, alguns outros na Revolta dos Marinheiros de 8 de Setembro, os restantes em em actividades várias.

Um desses presos era Edmundo Pedro que tinha então 17 anos. Retomo um texto seu, publicado em tempos nos «Caminhos da Memória», em que é descrito um episódio que revela bem o que foi aquele que ficou conhecido como «o período agudo» da vida no Tarrafal.

Em Agosto de 1937, depois de uma tentativa frustrada de fuga por parte de um grupo de prisioneiros, estes foram forçados a cavar uma vala em volta do campo, que garantisse maiores condições de segurança e matasse à nascença quaisquer ilusões de sucesso em novas tentativas de evasão. É a este acontecimento que Edmundo Pedro se refere nesta página retirada do seu primeiro volume de Memórias (*). 

«O trabalho da abertura da vala prosseguiu durante algum tempo. Mas eram cada vez menos os prisioneiros que escavavam o fosso. Nos primeiros dias, os guardas percorriam as tendas para ver quem estava em condições de trabalhar. Compeliam os que estavam deitados, com os primeiros sintomas de febre, a levantarem-se e a alinharem na formatura que precedia o trabalho da vala. Não me recordo, com rigor, o tempo que alguns de nós aguentámos aquele trabalho-escravo. Talvez duas semanas. Talvez três. Quando a quase totalidade dos prisioneiros ficara retido nas camas pelas febres elevadas, o Manuel dos Reis foi obrigado a suspender a abertura da vala. Fiz parte do número reduzidíssimo dos que aguentaram até ao fim aquele trabalho de forçados. 

Estava prestes a completar dezanove anos. Era saudável e vigoroso. Não estava ainda enfraquecido pelo regime prisional. 


O meu pai, logo que abandonou a frigideira, foi integrado numa das brigadas empenhadas na escavação da vala. Tinha, naquela altura, trinta e nove anos. Saíra da cela punitiva combalido. Mas esteve entre os poucos que, como eu, aguentaram até ao fim aquela dolorosa provação. 

Quando acabava o trabalho, ia ter comigo para saber como é que eu tinha suportado o penoso castigo diário. Procurava incutir-me coragem. Mas eu, naquela fase, estava altamente moralizado. Apesar de apreciar o seu apoio, a verdade é que não precisava dele. Estava firmemente determinado a aguentar as consequências previsíveis da luta que empreendera por aquilo que então considerava uma sociedade mais justa, configurada na experiência soviética em curso. O modo bárbaro como éramos tratados só confirmava a justeza do combate em que me empenhara pela justiça integral que identificava com aquela experiência. 

A revolta contra a injustiça de que éramos alvo levava-me a atacar o terreno com verdadeira raiva. Até cair, prostrado pela febre, empenhei-me no trabalho de forma determinada. Ao meu lado, e atrás de mim, outros companheiros evidenciavam o mesmo estado de espírito. Queríamos demonstrar aos guardas – que se passeavam, atentos e exigentes, por cima de nós – que o trabalho forçado a que nos submetiam não beliscava o nosso moral. Alguns, poucos, tinham outra atitude: esforçavam-se o menos que podiam. Mas a maioria dos militantes comunistas, especialmente os mais jovens, comportava-se como eu.

Mas, perante o desmedido esforço despendido, não havia esteio espiritual ou determinação ideológica, nem raiva suficiente, que conseguissem evitar que acabasse por ficar retido no leito.
Uma manhã não me levantei. Fui acometido, durante a noite, por um frio gélido. Batia ao queixo como se estivesse no Árctico. Em seguida, veio uma febre altíssima. Chegou aos 41 graus. (…) As febres altas mergulharam-nos num estado de semiletargia »

(*) Edmundo Pedro, Memórias. Um Combate pela Liberdade, Âncora Editora, 2007, pp. 213-214. 
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1 comments:

jvcosta disse...

A minha mulher e eu passamos férias em Cabo Verde e fomos ao campo de Chão Bom (o verdadeiro nome do campo dito do Tarrafal).

É uma visita emocionante, mas com dois planos. A minha mulher é angolana, lá teve um primo muito amigo, hoje somos amigos de outro preso célebre. Por isto, o campo diz-lhe muito. Tanto mais que o campo hoje museu é o da segunda fase, da guerra colonial.

Resta pouco ou nada da fase dos portugueses. Uma sugestão a pensar era de, enquanto estiver vivo o Edmundo Pedro (creio que já não há nenhum outro sobrevivente) e com muitos desenhos dos presos, se reconstruir simbolicamente pelo menos partes do campo inicial, desde logo a terrível frigideira.