Este texto de Guilherme Fonseca, juiz-conselheiro jubilado do TC, é de uma limpidez mais do que cristalina e de leitura mais que aconselhável. (Público de hoje, sem link).
Os acontecimentos de 14 de Novembro, em Lisboa, à volta da manifestação convocada para a Assembleia da República, barrada pelas forças policiais, vieram levantar duas questões: uma relacionada com a concreta actuação dessas forças e a outra com a gestão de imagens e de sons obtidos para fins jornalísticos e noticiosos, incluindo os que não foram emitidos naquele dia 14 de Novembro.
Tudo para saber, por um lado, se a actuação das forças policiais respeitou a Constituição da República Portuguesa (CRP) e a lei e se, por outro lado, o pedido de cedência de tais imagens e sons, para serem gravados, feito pela autoridade policial à RTP, no dia seguinte, e que foi atendido, tem base legal (no fundo, para saber quem e como pode aceder a essas fontes documentais).
Em primeiro lugar, há que registar diferentes patamares nos acontecimentos de 14 e 15 de Novembro, como sejam:
1. Patamares de legalidade e de legitimidade, no sentido de que não há censura a fazer, e que são:
a) A manifestação, como exercício de um direito constitucionalmente consagrado, qua tale, sem mais, o mais intensivo e extensivo que possa ser, com todas as marginalidades ou ocorrências que podem acontecer, sendo um direito que o Estado deve acolher e deve proteger (art. 45.º, n.º 2, da CRP).
b) A recolha de imagens televisivas da manifestação para serem divulgadas pelas estações de TV, entre elas, a RTP, no exercício da liberdade de expressão e de criação e do direito de informação jornalística, constitucionalmente consagrados para os jornalistas e colaboradores (art.s 37.º, 38.º, n.º 2, a) e 39.º, n.º 1, a), da CRP) e a que a lei ordinária dá cobertura (o Estatuto do Jornalista e a Lei da Televisão).
2. Patamares de ilegalidade e de ilegitimidade, no sentido de que há censura a fazer, e que são:
a) A actuação policial na repressão da manifestação, ainda que para pôr cobro às marginalidades ou ocorrências que aconteceram, após longo período de desafios dos manifestantes, podendo qualificar-se de excessiva e desproporcionada, contrariando os limites constitucionalmente definidos no art. 272.º, n.º 2 (o “estritamente necessário” aí previsto), em especial e, pelo menos, relativamente às pessoas presentes no local ou passantes, que nada tiveram a ver com tais marginalidades ou ocorrências. Portanto, um excesso de meios coercivos nas operações materiais da polícia, envolvendo o uso de bastões, que é constitucionalmente reprovado e sem cobertura na Lei de Segurança Interna, e que, no limite, poderia ter justificado o exercício do direito de resistência por parte dos manifestantes, como é reconhecido no art. 21.º da CRP.
b) O acesso da autoridade policial às imagens e sons colhidos pelas equipas televisivas, nas instalações da RTP, no dia seguinte, 15 de Novembro, sobretudo, para captar e gravar as imagens que não passaram para o público, isto é, não foram editadas na cobertura noticiosa dos acontecimentos de 14 de Novembro. Isto, independentemente das circunstâncias em que ocorreu aquele acesso, ou seja, se a autoridade se identificou e adiantou razões, quem facultou o acesso e como ele se desenrolou, o que tudo não vem agora ao caso (mas que só pode ter uma explicação: o interesse da autoridade policial na identificação de presumíveis suspeitos que estiveram na manifestação, podendo até envolver posteriormente a detenção de tais suspeitos).
Não é, pois, uma situação de videovigilância, por via de câmaras de vídeo utilizadas pela autoridade policial, e que se rege por regras próprias, que não interessa analisar aqui.
Ora, é só este último patamar negativo que importa apreciar, tendo, sobretudo, em vista a perspectiva constitucional que lhe diz respeito.
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Nesta perspectiva podem, naturalmente, convocar-se princípios ou normas constitucionais que consagram direitos fundamentais, tais como:
a) Direitos pessoais, que vão do direito à identidade pessoal, passando pelo direito à imagem e culminando no direito à reserva da intimidade da vida privada (art. 26.º da CRP), direitos que se projectam nos meios de comunicação social, devendo assegurar-se o “respeito pelos direitos, liberdades e garantias pessoais” e cabendo a uma entidade administrativa independente fazê-lo, como dispõe o art. 39.º, n.º 1, d), da CRP.
b) Direito à dignidade da pessoa humana, expressamente consagrado no art. 1.º da CRP, e que é a raiz das garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas ou contrárias à dignidade humana relativas às pessoas (art. 26.º, n.º 2, da CRP), sendo a imagem televisiva uma informação. Disto é reflexo a protecção a dados pessoais que consta do art. 35.º da CRP.
c) A liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores, que ressalta do art. 38.º, n.º 2, a), da CRP, e que é uma projecção da independência dos meios de comunicação social perante o Governo, a Administração Pública e os demais poderes públicos. E que tem o seguinte efeito: os trabalhos da criação intelectual dos jornalistas, ou em que tenham colaborado, são dos jornalistas (do estatuto do jornalista resulta o direito à protecção desses materiais e o direito ao sigilo profissional, que, no essencial, consiste em não revelar as fontes de informação, não podendo os jornalistas ser desapossados do material ou obrigados a exibi-lo, salvo por via de mandado judicial). Neste sentido aponta o art. 38.º, n.º 2, b), da CRP.
d) Direito à justiça, na vertente do exercício da acção penal, cabendo a perseguição criminal centrada no Ministério Público, convocando ainda o direito à segurança, que se colhe do art. 27.º, n.ºs 1 e 3, g), em conjugação com o art. 219.º da CRP.
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Todo este conjunto normativo da CRP pode, em tese, implicar uma tarefa de balanceamento ou concordância prática de todos esses direitos e essas liberdades potencialmente em confrontação.
E nessa tarefa há que partir de um axioma, o de que a liberdade prevalece sobre a segurança, pois os direitos fundamentais, sobretudo os direitos fundamentais de liberdade, são direitos absolutos, ou, pelo menos, quase absolutos, não podendo estar condicionados pelo legislador, nem podendo ser postos em causa por comportamentos da Administração, entendida num sentido amplo, de modo a abranger as actuações policiais. Enfim, a segurança é um instrumento da liberdade.
Depois, há que considerar a imposição da legalidade nas actuações policiais, a par dos demais princípios da actividade administrativa enunciados no art. 266.º da CRP, relevando aqui as actuações abrangidas no desenvolvimento de acções auxiliares das autoridades judiciárias na prevenção, investigação e repressão da criminalidade (in casu, seria a investigação e repressão, mas com o sentido da prevalência da lei, que inviabiliza quaisquer medidas que contrariem a lei e a fonte suprema da CRP).
Ora, a lei de segurança interna reflecte todo este quadro acabado de pincelar, pois estabelece que a actividade de segurança interna, compreendendo as funções da PSP, tem de respeitar a legalidade democrática, exerce-se nos termos da CRP e da lei, e as medidas de polícia são as previstas na lei, sendo uma delas a identificação das pessoas suspeitas, que se encontrem em lugar público ou aberto ao público ou sujeito a vigilância policial.
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Feito este apanhado, o que fica, em jeito de conclusão, é uma actividade ilegal e ilícita da autoridade policial, com violação do direito ao sigilo profissional dos jornalistas, na procura de um visionamento e gravação dos acontecimentos de 14 de Novembro, através das imagens e sons colhidos pelas equipas televisivas, e que só pode explicar-se por um interesse da autoridade policial na possível identificação de presumíveis suspeitos que participaram nesses acontecimentos.
Tudo isto, porém, à margem dos princípios gerais e fundamentais que regem a actividade de segurança interna, sem cabimento na tipologia das medidas de polícia e afora de qualquer autorização de autoridade judiciária. O que, além de inconstitucional e ilegal, acarreta, no limite, responsabilidade criminal, por ilícitos contra bens jurídicos pessoais (como está previsto no art. 44.º da Lei de Protecção de Dados Pessoais, quanto a acesso indevido a dados pessoais, e no art. 199.º, n.º 2, b), do Código Penal, quanto a gravações ilícitas).
Ainda que, por hipótese, a gravação do visionamento dos acontecimentos de 14 de Novembro chegasse, como chegou, por via tortuosa, às mãos da autoridade policial, a prova assim obtida nunca poderia ser utilizada em processo penal, por não obedecer ao condicionalismo legal e por faltar a autorização judicial prévia.
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