Com um raio que atacou o Vaticano e o anúncio da resignação de Bento XVI, assistimos ontem ao início de uma telenovela que só terminará certamente daqui a mais de um mês, quando fumo branco anunciar que há um novo chefe para a Igreja. Entretanto, estamos já em pleno Toto-Papa, sobem as cotações nos mercados de apostas e os jornalistas exultam.
Mas talvez valha a pena recuar umas décadas na vida do futuro ex-Papa.
Como é sabido, houve uma clara retracção a nível de Roma nos anos que se seguiram ao encerramento do Vaticano II, que teve lugar em 1965. Mas o que é menos conhecido é que existiu então um fortíssimo movimento de teólogos que não se conformaram com os factos e que reivindicaram o seu direito à liberdade de pensamento e de expressão dentro da Igreja. Exprimiram-no num documento publicado simultaneamente num jornal italiano e num outro alemão, em 16 de Dezembro de 1968: «Declaração sobre a liberdade e a função dos teólogos na Igreja». O texto chegou a 1.360 assinaturas, mas os promotores foram 38 – os principais e mais avançados teólogos ligados ao Concílio, entre os quais... Joseph Ratzinger. (Não é fácil encontrar o referido documento, mas os interessados podem lê-lo aqui.)
Trata-se de um ataque muito violento contra a Congregação para a Doutrina da Fé, a mesma que foi presidida muito mais tarde por Ratzinger até ser eleito papa (onde ganhou a alcunha de «rottweiler de Deus»), com uma descrição pormenorizada de muitas exigências, quanto a modo de funcionamento e a direitos considerados fundamentais. Um pequeno excerto para se ver o «tom»:
«Os teólogos abaixo-assinados vêem-se constrangidos e na obrigação de chamar abertamente e pela mais grave forma a atenção para o facto de a liberdade dos teólogos e da teologia ao serviço da Igreja, reconquistada pelo Segundo Concílio do Vaticano, não dever ser hoje posta em perigo. [...] Pretendemos que se respeite a nossa liberdade todas as vezes que, pela palavra ou por escrito, comunicamos as nossas convicções teológicas fundamentadas e o fazemos pela aplicação do melhor do nosso saber e da nossa consciência.»
Quando e porquê se retraiu o ainda actual Papa? Hans Küng, um velho compagnon de route e, mais tarde, epicentro de fortes divergências, pensa que Ratzinger se assustou muito com as repercussões do Maio de 68 e que terá iniciado aí a sua «involução».
Talvez mas julgo que não só. Já o escrevi dezenas de vezes e repito: «Com a distância que o tempo cria, parece hoje evidente que o Concílio não desiludiu por acaso ou por engano. O que se passou foi que a Igreja, ao mais alto nível, recuou, num sábio exercício de sobrevivência. A pesada pirâmide sobreviveu a um terramoto – abanou, mas não ruiu. A grande diferença em relação ao que se passou muito mais tarde numa outra pirâmide, a da União Soviética, foi que a Igreja resistiu quando percebeu que estava ameaçada. Durante o Concílio, também ela arriscou uma glasnost, uma abertura à sua maneira. Iniciou então um tímido aggiornamento, mas travou-o a tempo de não deixar que ele se transformasse em perestroika.»
Como muitos outros, Ratzinger entrou nesta onda, a partir do final da década de 70, e nunca mais fez marcha atrás. Muito pelo contrário. E destes quase oito anos de reinado, apesar de algumas iniciativas talvez louváveis, ficará a marca de um triste e nocivo conservadorismo, no início de um século, que tanto teria beneficiado de rasgos de audácia e de coragem de uma pessoa inegavelmente inteligente e culta e com a projecção universal que a função lhe concedeu.
A sua despedida, em latim, no ano da graça de 2013, foi mais do que simbólica: falou para dentro e só uma jornalista o entendeu.
A sua despedida, em latim, no ano da graça de 2013, foi mais do que simbólica: falou para dentro e só uma jornalista o entendeu.
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