A ler, com muita atenção, este texto de Maria José Morgado, publicado no Expresso de hoje (sem link). Mal, muito mal, vai um país cujos cidadãos perderam a confiança nos magistrados e nos tribunais.
«A procuradora sentiu o peso esmagador da inoperância da justiça para o combate a este tipo de corrupção perante a falta de confiança nos magistrados e nos tribunais.»
A procuradora esperava pela testemunha mergulhada na serenidade mental dos momentos incandescentes. Sabia que tanto podia ter a prova completa de um crime de corrupção em marcha como o fracasso total das provas.
A testemunha, coautora de um crime de corrupção, havia-lhe pedido uma reunião para a denúncia do caso. Só assim seria possível conhecer as profundezas da história, fazer prova em tribunal e ter uma condenação justa.
Quando ela entrou lembra-se de ter reparado também na sua calma alinhada, no olhar aparentemente decidido.
A história rocambolesca podia ter um desfecho simples com a colaboração ativa da testemunha. Um interminável martírio de burocracias absurdas para obter um mero licenciamento dependente de muitas decisões, muitos estudos e agora em fase final. O decisor final propunha à testemunha o pagamento de uma comissão de 150.000 euros a troco do licenciamento dali a três dias. A testemunha oscilava entre a tentação egoísta de pagar para pôr fim a cinco anos de via-sacra de repartições públicas ou fazer a entrega à polícia da vil criatura, com custos porventura superiores ao do suborno pedido.
A procuradora explicou-lhe com clareza as vantagens do estatuto legal de proteção de testemunhas colaboradoras com a justiça, que beneficiaria de causas de exclusão da ilicitude desde que entregasse voluntariamente provas importantes. Era importante manter o encontro para o pagamento do suborno combinado entre ambos e nesse dia as autoridades prenderiam a pessoa em causa a coberto da sua revelação. Também lhe explicou que seria o único desfecho justo para um caso tão repugnante cuja punição dependia exclusivamente da sua colaboração espontânea e legal. A testemunha pediu um dia para pensar e voltou no dia seguinte. Chorava de revolta. Declarou que só confiava na pessoa à sua frente, que tinha medo de ser colaboradora num processo sujeito a tramitações infindáveis, a perseguições da comunicação social, a uma duração indefinida para no fim arriscar ser condenada por causa de uma colaboração que se viraria contra ela diante do tribunal inseguro perante as peripécias da prova e a ausência de confissão do decisor público corrupto. Pediu-lhe para esquecer para sempre tudo o que lhe tinha dito, inclusive o seu nome. Despediram-se com tristeza inexplicável.
A procuradora sentiu mais uma vez o peso esmagador da inoperância da justiça para o combate a este tipo de corrupção perante a falta de confiança das pessoas nos magistrados e nos tribunais. Perante uma certa tendência para tratar os arrependidos como traidores e bufos desprezíveis. Lembrou-se dos ensinamentos do juiz Falcone durante a investigação da máfia siciliana ao beneficiar da portentosa colaboração dos arrependidos que lhe entregaram toda a organização mafiosa. Conta-se que o fizeram por confiarem cegamente naquele homem.
Sentiu com amargura que havia um oceano intransponível de dificuldades entre aqueles que querem fazer justiça e a própria justiça — a falta de confiança na justiça.»
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