Na sua crónica semanal no Público de hoje (sem link), José Pacheco Pereira diz longamente o que pensa sobre o regresso de Sócrates e, sobretudo, sobre o seu significado e sobre as reacções que está a provocar.
Se não concordo com tudo o que escreve sobre os malefícios do último governo do PS, há um aspecto em que insiste e que, desde a noite da passada quarta-feira, não consigo deixar de ter presente: só o estado de «orfandade» em que o país se encontra e o desejo de que aconteça «qualquer coisa» ou apareça «alguém» podem justificar o entusiasmo – e esperança – que se espalhou, até onde menos seria de esperar, e que foi especialmente visível nas redes sociais. De repente, um simples ajuste de contas de um dos primeiros-ministros mais odiados da democracia (talvez ex aequo com Vasco Gonçalves) agigantou-o e tudo, ou quase tudo, foi esquecido e lhe foi perdoado. Simplesmente porque reapareceu – como partiu, igual a si próprio, tonitruante, sem que nem dois anos, nem Paris, tenham deixado marcas de salutar acalmia e distância.
Não vou ao ponto de dizer, como JPP, que Sócrates pode ser «o populista ideal», a surgir de uma qualquer esquina do poder ou da falta dele, mas partilho um certo sentimento de perigo, indefinido mas nem por isso inexistente, neste seu regresso à nossa cena política, neste momento tão complexa e tão frágil. Aguardemos porque o futuro próximo esclarecerá inevitavelmente um certo número de coisas.
O texto na íntegra, com alguns realces meus:
Por que não saímos da cepa torta
Não há melhor exemplo da miséria da nossa vida pública, na sua versão mediática, do que o facto de José Sócrates ser a sua figura dominante num dia só, quanto mais por meia dúzia de dias. Isso, sim, é que é revelador e preocupante, não a figura do antigo primeiro-ministro, ou, acima de tudo, o que ele disse ou possa vir a dizer, e muito menos a sua putativa futura vida política, que, qualquer pessoa com um mínimo de bom senso e conhecimento da realidade sabe que, se passar pelo voto, tão cedo não existe. Mas a cerimónia colectiva de incomodidade e embasbacamento com a entrevista, essa sim, é um péssimo sinal da anomia dos nossos tempos e das fortes correntes de nostalgia e radicalismo que a atravessam.
Tudo isso explica o “efeito Sócrates”, tão intenso quanto é nula a importância do que disse, um da série de obsessões, mentiras e falsificações de números, estatísticas e factos, que tiveram um papel muito relevante no agravamento da crise do país e em colocá-lo numa situação de bancarrota. Sim, porque, com mais ou menos “narrativa”, a acção de Sócrates como primeiro-ministro conduziu o país a um abismo. E sobre isso não se soube nada de novo. Pior: confirmaram-se todas as suspeitas do que ele nos tinha feito e continua capaz de fazer.
Se o fez por ser um “animal feroz”, ou por ter aquela determinação cega que ninguém lhe nega e tão evidente foi na entrevista, eu ainda me preocupo mais, porque o teor autoritário e dominador da personagem junto dos espíritos fracos foi uma razão do seu sucesso político. Se ser “animal feroz” foi ou é qualidade, então essa qualidade serviu para nos atirar a todos para uma crise maior e sem fim, quando podia ser bem mais pequena e moderada nos seus efeitos. O radicalismo que a reacção a Sócrates revela numa parte da opinião pública e publicada, poderia ser a descoberta do populista salvífico que muitos esperam, se não fosse tão viva a memória das suas malfeitorias. É porque não quero que essa memória se esvaia, na fácil máquina de esquecimento que é a comunicação social, que também aqui o trato como assunto, porque o mal que ele traz alimenta-se do silêncio, não da fala.
Este homem foi um perigo, ajudou, e muito, a afundar-nos colectivamente, e seria hoje de novo um perigo, se não houvesse tão recente e viva memória dos seus “feitos”. Mas o que é interessante é perceber que dele não nos defenderam muitos dos iluminados da nossa praça, à direita e à esquerda, como agora também não seriam capaz de o fazer. A razão por que me preocupa a reacção à entrevista é esta: este homem seria o populista ideal, e muita gente abre-lhe alas, apenas porque ele fala alto e grosso, num mundo em que Seguro é o que é e Passos e Relvas são que são e não suscitam nem temor, nem entusiasmo. Apenas tédio e preocupação.
Quando falei da nostalgia que alimenta esta reacção à entrevista foi disso mesmo: a direita precisa de um inimigo e trata-o como a quinta-essência das malfeitorias da esquerda, coisa a que nunca pertenceu, porque precisa de encontrar identidade pela construção de um adversário. Sócrates é o adversário ideal, e é por isso que foi com a sua colaboração e assentimento que o Governo lhe abriu as portas da “sua” televisão. Para além disso, calcula que, por muito que possa vir a ser atingido por um ou outro remoque certeiro, Sócrates será um problema essencialmente para o PS. Os estragos que Sócrates possa vir a fazer ao Governo serão sempre entendidos como danos colaterais, aceitáveis pela enorme vantagem de ele impedir, pela sua mera existência semanal na televisão, a consolidação da liderança de Seguro. Por outro lado, a vendetta pessoal de Sócrates contra Cavaco é também bem-vinda, porque, para o grupo à volta de Passos Coelho, Relvas, Menezes e Ângelo, colocar o Presidente na ordem é uma necessidade estratégica. E pensa, e bem, que não será possível a Sócrates no seu comentário escapar à “síndroma” de Santana Lopes em que qualquer coisa discutida em 2013 vai dar, por volta da terceira frase, à incubadora, ou, no caso de Sócrates, aos eventos de 2011 e à contínua autojustificação de tudo pela traição alheia.
O mesmo fenómeno de nostalgia e radicalização existe à esquerda. A esquerda, principalmente a que está órfã no PS de Seguro, enfileira atrás daquilo que pensa ser um cabo de guerra a sério e não de um clone com falinhas mansas. Há demasiada orfandade na actual “oferta ”política para deixar um lugar para Sócrates e ele ocupa-o não porque queira o lugar de Seguro, mas também porque, para ele, as dificuldades de Seguro serão a sua versão dos danos colaterais. O “animal feroz” para “tomar a palavra”, que nele significa o mesmo que “tomar um castelo”, sabe que prejudica Seguro, mas é suficientemente obcecado com a sua pessoa e a sua missão para não se preocupar com isso.
A comunicação social, com quem Sócrates manteve uma relação muito próxima até ao momento em que iniciou a sua queda, quando, à maneira portuguesa, todos os que lhe apararam o jogo, o começaram a calcar com a mesma veemência com que o adulavam, gosta de festa e Sócrates dá-lhes festa. Este homem que, como Relvas, mas com muito mais poder e cumplicidades, usou todos os meios ao seu alcance para afastar os jornalistas que se lhe opunham e punir todos os que o afrontavam, volta hoje a ser tratado com a mesma complacência com que se aceitavam sem questionar os seus anúncios propagandísticos e sua contínua manipulação dos factos e estatísticas. O modo como se menoriza o próprio conteúdo da sua entrevista — insisto um sem novidades de tudo aquilo que andou a dizer em 2010-11 —, em detrimento do folclore do seu “efeito”, mostra isso mesmo.
A história da “narrativa” é reveladora. Sócrates apresentou-se como pretendendo combater a “narrativa” que a direita fazia da sua governação e queda, opondo-lhe a sua própria “narrativa”. Esta história das “narrativas”, um modismo para designar uma construção ficcional de eventos, preso exactamente pelo fio da narrativa, é atractiva porque procede a uma selecção de factos, moldados pela sequência cronológica escolhida, que pode não ser a que aconteceu, e pela eliminação dos “factos-problema”, que podiam prejudicar a clareza ficcional da história. Na sua “narrativa”, Sócrates coloca o seu principal motor interior, a sua vontade, cuja determinação varreu com tudo, bom senso, estudo, conhecimento, verdade, atenção ao real, custos, condições, tudo. E levou-nos ao que se sabe.
É, no fundo, um argumentário político, que pode ter uma maior ou menor aproximação à realidade ou à ideologia, e que serve como discurso de justificação, mas não é, nem foi, o que aconteceu, não é a realidade, nem a verdade. Não foi o que aconteceu nem na “narrativa” contra Sócrates, nem na do próprio Sócrates. Mas a escolha por Sócrates desta figura da “narrativa” mostra como, para ele, os factos contam pouco, mas sim o conflito mediático entre interpretações, o que é consistente com a recusa que sempre teve da palavra “verdade” no vocabulário político. Ele não diz “no que aconteceu”, mas sim “na narrativa do que aconteceu”. Há quem ache que isto é que é a essência do “discurso político”, a moldagem da realidade pela vontade política. Sócrates era desta escola, uma variante mais animada do que a moldagem da realidade pelas folhas de Excel, mas em ambos os casos com efeitos desastrosos.
Aliás, Sócrates deu muito poucos factos, e os que deu estão manchados, por serem falsos (a escolha de números e estatísticas manipuladas, uma sua pecha de sempre) ou poderem ter uma outra leitura e interpretação. Por exemplo, a aprovação do PEC IV, com o apoio europeu (desvalorizado na “narrativa” da direita), que tipo de ajudas garantia para Portugal? Desconhece-se. Essas ajudas poderiam sobreviver à crise grega e à subida exponencial dos juros nos mercados, sem darem origem a um qualquer “plano de resgate”? Duvido. Por aí adiante. Como é que se poderia manter um primeiro-ministro que, no momento em que mais precisava de alargar a sua base de apoio, à frente de um Governo minoritário, hostilizava tudo e todos? Por aí adiante. Nada foi verdadeiramente explicado na sua “narrativa”, que, no essencial, nos mostrou o mesmo homem que nada aprende, nada esquece, e cuja vaidade e vontade varrem tudo à frente.
Não foi a entrevista que foi interessante. Foi o seu efeito. O sucesso do retorno de Sócrates não é o sucesso do governante de 2005-2011, nem a sua reabilitação, mas o sucesso do populismo e da orfandade do país político de 2013. Faz uma diferença. Faz toda a diferença.
.
0 comments:
Enviar um comentário