21.4.13

Escritores e escreventes



Eu sei que os tempos já não são o que eram e que os escritores também não. E nada tenho a favor ou contra José Luís Peixoto, já que tudo o que dele li me deixou totalmente indiferente. Mas, muito antes de ver, no último Ípsilon (sem link), o excelente texto de António Guerreiro que abaixo reproduzo, já tinha ficado perplexa com tanta agitação e vedetismo da pessoa em questão, sobretudo desde que percebi que se tornou também guia turístico. Enfim...

O que é um escritor?

Quando vemos José Luís Peixoto, em grande plano, nos cartazes publicitários da revista Visão, a exibir a sua figura, enquanto autor de dez contos, "inspirados" nos dez cantos de Os Lusíadas (contos e cantos que a dita revista está a editar e a distribuir para comemorar os seus 20 anos), apetece repetir duas perguntas que, outrora, foram feitas respectivamente por Robert Musil e René Char: "É possível dizer o que é um escritor?" e "Há incompatibilidades, para um escritor?". Na resposta de Georges Bataille a esta pergunta, podemos ler: "É claro que o escritor autêntico, que não escreve por medíocres ou inconfessáveis razões, não pode, sem cair na superficialidade, fazer da sua obra uma contribuição para os desígnios da sociedade útil". Desde então, a imagem e o estatuto do escritor mudaram muito, tal como a profissão literária, mas não ao ponto de conseguirmos olhar com indiferença e sem nenhuma interrogação a foto conspícua de José Luís Peixoto enquanto escritor-publicitário-homem de negócios. Nos seus Ensaios Críticos, Barthes estabeleceu uma vez uma oposição entre escritores e escreventes, onde dizia, entre outras coisas, que a palavra do primeiro, instransitiva, é um gesto que encontra o seu sentido na instituição literária, enquanto a do segundo é uma actividade produzida e consumida à sombra de outras instituições que nada têm que ver com a literatura e fazem parte de outros circuitos (o mercantil, sobretudo). A figura de José Luís Peixoto neste cartaz publicitário deve chamar-nos a atenção para uma transformação da instituição literária, por acção destes escritores que se dirigem prioritariamente a um "público" e respondem fundamentalmente a exigências externas, o que os coloca na dependência da sanção anónima do mercado. A sua consagração faz-se na rua, na esfera pública mediática. Eles situam-se num campo que não reivindica autonomia, ao contrário do que acontecia no campo literário, tal como o conhecemos até recentemente. Segundo as regras da instituição literária, no interior da qual adquirem sentido as perguntas de Musil e Char, o reconhecimento de um escritor pelos seus pares é o critério primeiro de consagração. E isso significa que eles devem o seu prestígio ao facto de não fazerem concessões ao grande público e de instituírem um mundo económico às avessas (o que não quer dizer que não haja uma lógica económica nesta economia carismática). Ora, esta convivência pacífica com a heteronomia (e já não com a exigência de autonomia literária), esta boa consciência no tráfico da figura pública do escritor, faz com que o Peixoto e todos os seus companheiros (ansiosos por se verem também em mupis de rua) nada tenha que ver com o que dantes se chamava "escritor", para quem a escrita começa quando o Autor entra no seu desaparecimento, na sua própria morte. Agora, trata-se exactamente do contrário: suprimir a escrita em proveito do Autor. O monopólio da legitimidade literária, isto é, o monopólio da autoridade para dizer quem é escritor e quem não é já não está do lado daquilo a que se chamou instituição literária, com as suas diversas instâncias; está do lado de quem vende Os Lusíadas por interpostos Peixotos; está do lado dos Peixotos, a quem cabe a definição legítima de Camões como escritor.

Ípsilon, 19/4/2013, p. 36.
.

1 comments:

FNV disse...

Olha olha...eu que tanto tenho usado essa do Barthes ( a dos escreventes)...