Clara Ferreira Alves, na «Revista» do Expresso de ontem:
«Deixa ver se percebo. Quando se trata da vida privada de um Presidente, sobretudo da vida privada que envolve actos sexuais, como por exemplo um adultério pequeno-burguês, ou um brutal adultério legitimado pelos olhos da comunidade, não podemos falar do assunto. Elegemos um senhor para se sentar, por exemplo, no trono do Eliseu e administrar os negócios da nação, e pagamos o seu séquito e os guarda-costas. Não queremos saber o uso. Se descobrimos que o dito guarda-costas tem por função oficial conduzir o Presidente numa motocicleta a um apartamento em cujo leito repousa a ilegítima ou, pormenor romântico, comprar croissants frescos na padaria quando desponta a madrugada e levá-los ao dito leito, também não podemos comentar o acto.
Nem regulá-lo. Nem condená-lo. Trata-se da vida privada e não podemos imiscuir-nos. Não devemos. (...)
Imagine-se que o dito François Hollande, serial killer de mulheres bonitas (pormenor fundamental para a absolvição geral), e as legítimas tinham filhos adoptados. Vários filhos adoptados. Adoptados da primeira mulher, da segunda, e, quiçá, de todas as que hão de vir. O consenso generalizado, sempre repugnando-se de se meter na vida privada ou meter-se na "vida das crianças", recusaria a conclusão de que Hollande é um mau pai ou um pai incompetente que sujeita os filhos a instabilidade e humilhação. O consenso generalizado lamentaria a sorte de tais filhos mas não retiraria a conclusão de que pais adúlteros não devem ter o direito a adoptar. Que diabo, nem mães. Estas coisas acontecem e são do domínio da "esfera privada". Tratando-se de homossexuais (nem precisam ser Presidentes), o caso muda de figura. O consenso generalizado detectaria mais um sinal da devassa e da deriva homossexual, veria no pormenor do croissant um nojo físico e proclamaria a incapacidade dos homossexuais para adoptarem e garantirem filhos sem trauma. Obviamente. Uns depravados. Porque, tratando-se de homossexuais, da sua saúde (caso da sida e das descriminações aberrantes) ou da sua família (caso do casamento e adopção), a sociedade bem-pensante quer, deve, tem a obrigação de imiscuir-se na vida privada, de a punir e vigiar como um crime.»
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