No Público de hoje, um importante texto em que 38 personalidades ligadas a várias instituições universitárias se insurgem pelo papel ainda residual atribuído às mulheres no debate político.
Excertos e o texto na íntegra:
«Mais uma grande conferência sobre o país. Mais uma grande conferência sobre o país onde a palavra é dada apenas a homens: Olhares Cruzados sobre Portugal (29 Jan.-19 Fev. 2014). Mais um grande ciclo de conferências e debates onde os organizadores – desta vez uma universidade de prestígio, a Universidade Católica, e um jornal de referência, o PÚBLICO – consideram “normal” não terem uma única mulher entre os 12 ilustres convidados. (...)
A escassez de mulheres em conferências tem sido recorrente. Foi assim nas conferências recentemente organizadas pelo jornal Expresso, pela Fundação de Serralves, pela Câmara Municipal de Cascais. A lista é longa e ilustra um fenómeno muito mais difuso. O acesso à voz pública em Portugal – na escrita de colunas de opinião em jornais, nos programas de televisão de comentário de actualidade, ou nas grandes conferências que pretendem, e bem, promover uma reflexão sobre o país – continua a ser dominantemente masculino. . (...)
O que está em causa não é o “mérito” de quem é escolhido. O que está em causa é o processo, consciente e inconsciente, que leva a que a voz masculina seja a voz pública dominante. . (...)
Os “olhares femininos” não são necessariamente diferentes dos “olhares masculinos”. A diversidade dos olhares femininos é tanta como a dos masculinos. O gesto político e simbólico de uma escolha feita apenas no masculino é aquilo que questionamos. O que é que revela sobre um Portugal onde este ano se celebram os 40 anos do 25 de Abril? O que é que revela sobre um país que há quase 40 anos garantiu na sua Constituição a não-discriminação das mulheres? Revela que continuam a subsistir muitos sinais de exclusão evidente face às mulheres. (...)
Quando é que os espaços de opinião pública vão começar a incluir, espontaneamente, mulheres? Quando é que a ausência de mulheres se tornará incómoda e inadequada a conferências que pretendem promover o diálogo, a democracia, e os direitos sociais, políticos e humanos? (...)
Só quando se tiver presente que o predomínio das vozes masculinas conduz à naturalização do sexismo, é que as desigualdades de género deixarão de existir no espaço público português.»
M de Mérito ou M de Masculino?
Mais uma grande conferência sobre o país. Mais uma grande conferência sobre o país onde a palavra é dada apenas a homens: Olhares Cruzados sobre Portugal (29 Jan.-19 Fev. 2014). Mais um grande ciclo de conferências e debates onde os organizadores – desta vez uma universidade de prestígio, a Universidade Católica, e um jornal de referência, o PÚBLICO – consideram “normal” não terem uma única mulher entre os 12 ilustres convidados.
Provavelmente nem repararam, tal é a naturalização da ausência de mulheres no espaço público. Os oradores e moderadores são oriundos de vários mundos, da política à economia, da religião à ciência. São do género masculino.
A escassez de mulheres em conferências tem sido recorrente. Foi assim nas conferências recentemente organizadas pelo jornal Expresso, pela Fundação de Serralves, pela Câmara Municipal de Cascais. A lista é longa e ilustra um fenómeno muito mais difuso. O acesso à voz pública em Portugal – na escrita de colunas de opinião em jornais, nos programas de televisão de comentário de actualidade, ou nas grandes conferências que pretendem, e bem, promover uma reflexão sobre o país – continua a ser dominantemente masculino. Os dados apresentados num estudo de Rita Figueiras, investigadora da Universidade Católica Portuguesa, mostram que a percentagem de mulheres é residual: em 2005, 87% dos comentadores eram homens e apenas 13% eram mulheres. Quase dez anos depois, mudou alguma coisa?
O que está em causa não é o “mérito” de quem é escolhido. O que está em causa é o processo, consciente e inconsciente, que leva a que a voz masculina seja a voz pública dominante. O que está em causa é aquilo que esta e muitas outras conferências afirmam sem o dizer – que o mérito ainda é considerado um atributo masculino e que a consciência de género das nossas elites – homens, mas tantas vezes também mulheres – é, no geral, incipiente, quando não mesmo inexistente.
O mérito e a qualidade serviram, historicamente, para excluir as mulheres do espaço público de uma forma assumida. Na Europa do século XIX (como continua a acontecer em muitos lugares do mundo em 2014) inúmeras instituições, tais como as universidades, impediam formalmente a entrada de mulheres, e o desempenho de inúmeras profissões estava vedado a pessoas do sexo feminino. Hoje, em Portugal, não existem leis que discriminem as mulheres. Mas sob a igualdade “oficial” esconde-se a desigualdade informal que, por não ser assumida, é mais difícil de identificar.
Hoje, o mérito continua a servir para excluir as mulheres, mas de uma outra forma. Os argumentos de justificação são quase sempre os mesmos. Por um lado, “o nosso critério é somente o do mérito e nada tem nada a ver com questões de género. Assim, o facto de só escolhermos homens foi apenas uma coincidência ou um acaso”. Por outro lado, “existem mais homens notáveis do que mulheres”. No entanto, se fosse realmente o mérito o critério a imperar, então haveria (muitas) mais mulheres a falar nas grandes conferências que hoje as instituições organizam como uma forma de consolidar o seu prestígio na sociedade portuguesa. Quanto ao argumento de que existem “mais homens”, trata-se de um círculo vicioso que também já foi amplamente estudado: são mais conhecidos porque são mais escolhidos, são mais escolhidos porque são mais conhecidos. Saberão aqueles que escolhem – para as colunas dos jornais, para os painéis televisivos, para as grandes conferências – que a maioria dos “doutorados” em Portugal são “doutoradas”?
Os “olhares femininos” não são necessariamente diferentes dos “olhares masculinos”. A diversidade dos olhares femininos é tanta como a dos masculinos. O gesto político e simbólico de uma escolha feita apenas no masculino é aquilo que questionamos. O que é que revela sobre um Portugal onde este ano se celebram os 40 anos do 25 de Abril? O que é que revela sobre um país que há quase 40 anos garantiu na sua Constituição a não-discriminação das mulheres? Revela que continuam a subsistir muitos sinais de exclusão evidente face às mulheres. Paradoxal é o facto desta exclusão das mulheres ser levada a cabo pelas mesmas elites de quem se esperaria uma maior consciência de género e um maior sentido crítico em relação à naturalização do sexismo.
Quando é que os espaços de opinião pública vão começar a incluir, espontaneamente, mulheres? Quando é que a ausência de mulheres se tornará incómoda e inadequada a conferências que pretendem promover o diálogo, a democracia, e os direitos sociais, políticos e humanos?
Só quando existirem muitos homens e mulheres incomodados com a ausência de vozes femininas nos mais prestigiados e influentes espaços da opinião pública; só quando um número substancial de pessoas (nomeadamente as elites intelectuais, políticas, académicas, económicas) considere que este é um sinal de uma cultura democrática deficitária; só quando a crítica ao sistema invisível de prioridade masculina também vier de dentro – daqueles que têm acesso à palavra e não são mulheres – é que poderá aumentar a consciência em relação ao significado político, social e cultural destas escolhas. Só quando se tiver presente que o predomínio das vozes masculinas conduz à naturalização do sexismo, é que as desigualdades de género deixarão de existir no espaço público português.
Ana Nunes de Almeida (socióloga, ICS-ULisboa) / Ângela Barreto Xavier (historiadora, ICS-ULisboa) / Anne Cova (historiadora, ICS-ULisboa) / António Araújo (historiador e jurista) / António Costa Pinto (politólogo, ICS-ULisboa) / Clara Raposo (professora de Finanças, ISEG-ULisboa) / Cícero Pereira (psicólogo social, ICS-ULisboa) / Cristiana Bastos (antropóloga, ICS-ULisboa) / Cristina Nogueira da Silva (historiadora, FD-Univ. Nova de Lisboa) / Elsa Peralta (antropóloga, ICS-ULisboa) / Elizabete Azevedo-Harman (politóloga, Chatham House) / Filipa Lowndes Vicente (historiadora, ICS-ULisboa) / Filipe Carreira da Silva (sociólogo, ICS-ULisboa) / João Ferrão (geógrafo, ICS-ULisboa) / João Pedro George (sociólogo, Univ. Nova de Lisboa) / Jorge Vala (psicólogo social, ICS-ULisboa) / Karin Wall (socióloga, ICS-ULisboa) / Luísa Schmidt (socióloga, ICS-ULisboa) / Luis Mah (politólogo, ISEG-ULisboa) / Mafalda Soares da Cunha (historiadora, Universidade de Évora) / Magda Nico (socióloga, CIES-IUL) / Marzia Grassi (cientista social ICS-ULisboa) / Maria Alexandre Lousada (historiadora, FLUL-ULisboa) / Marina Costa Lobo (politóloga, ICS-ULisboa) / Marta Pedro Varanda (socióloga, ISEG-ULisboa) / Miguel Jerónimo (ICS-ULisboa) / Nuno Domingos (antropólogo, ICS-ULisboa) / Olívia Bina (cientista política e geógrafa, ICS-ULisboa) / Paulo Trigo Pereira (economista, ISEG-ULisboa) / Pedro Lains (historiador, ICS-ULisboa) / Pedro Magalhães (politólogo, ICS-ULisboa) / Riccardo Marchi (historiador, ICS-ULisboa) / Ricardo Roque (antropólogo, ICS-ULisboa) / Rita Almeida Carvalho (historiadora, ICS-ULisboa) / Sara Falcão Casaca (socióloga, ISEG-ULisboa) / Sofia Aboim (socióloga, ICS-ULisboa) / Susana Matos Viegas (antropóloga, ICS-ULisboa) / Steffen Hörnig (economista, FE-UNL)
(Daqui)
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1 comments:
A mesma coisa na literatura o que me levou a escrever o tal artigo "Diatribe de uma Eva muda (em tempos de hoje)" publicado recentemente em Letras & Letras ao qual o Jornal de Letras nem se dignou a responder e ao qual Colóquio Letras respondeu o seguinte: "Apesar do seu interesse, o tom polémico nele utilizado não se adequa ao espírito da revista, algo definido desde a criação da Colóquio/Letras, conforme se pode ler no nosso site na rubrica «História».” Enfim!! O tom não é polémico, o problema é que é grave! Gravíssimo... E que eu saiba liberdade de expressão devia ser um direito fundamental de homens e mulheres deste mundo... O Público por sua vez, que publica montes de coisas de escritores como José Luís Peixoto, Valter Hugo Mãe e José Eduardo Agualusa, também nem sequer se dignou a responder-me. E o Público é público e o que é público é “real”, forjando a memória do país que se torna "Homosocial” para usar uma expressão de Hillary Owen e Cláudia Pazos Alonso em “Antigone's Daughters?: Gender, Genealogy and the Politics of Authorship in 20th-Century Portuguese Women's Writing.”
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