25.10.14

Boa-fé e gente de má-fé



José Pacheco Pereira, no Público de hoje:

«Se há causa a que eu adiro sem reservas é a dos trabalhadores com reformas antecipadas do Metro de Lisboa, que viram as suas reformas cortadas unilateralmente do complemento de reforma que a empresa lhes atribuiu para os incentivar a reformar-se. Não se espantem, parece uma causa laboral como as outras, mas é mais do que as outras. É diferente. (...) É uma causa cívica em que está em jogo um princípio moral que deveria ser a base da nossa sociedade democrática: a boa-fé.

Um dos piores dos meus anátemas contra este Governo é exactamente a destruição dessa boa-fé, como se fosse o acto mais normal do mundo, como quem respira, sem pensar duas vezes, até sem atenção, nem sequer preocupação pelos efeitos não apenas nas vítimas dos seus actos, mas no tecido social e nos laços que unem as pessoas numa sociedade civilizada e numa democracia em que todos somos proprietários e penhores do mesmo poder. Este à-vontade e esta indiferença pelo que é e significa a boa-fé vai ficar como uma mancha para o presente e para o futuro no tónus moral destes tempos. (...)

No dia 1 de Janeiro deste ano, o Governo violou o contrato que tinha feito. O corte unilateral dos complementos de reforma pelo Governo significou reduções de 40 a 60% nas reformas dos trabalhadores. Imaginem acordar no dia seguinte a ganhar menos de metade do que ganhavam no dia anterior e serem já velhos para arranjarem um novo emprego, terem encargos comportáveis quando se tinha uma outra reforma, ou seja, não era “viver acima das suas posses”, e ficarem agora sujeitos a dívidas e penhoras e acima de tudo, mesmo com a reforma por completo, vivia-se no remedeio. Não estamos a falar de gente rica, mas de trabalhadores, daqueles que se espera num país civilizado que engrossem a classe média, educando os seus filhos para viverem melhor do que os pais, acederem a consumos com que os seus avós nunca sonharam. É assim que se cresce, melhora, se avança. É isto que é o melhorismo social, a melhor garantia de um crescimento económico. (...)

Mas o problema que está presente neste caso é um problema de boa-fé, e do papel da boa-fé numa sociedade democrática e que pretende regular-se por regras de conduta civilizadas. Nem sequer pretendo discutir o que isso significa, “civilizadas”, porque toda a gente sabe o que é. E sabe também o que significa a boa-fé: significa que, se quando o governador do Banco de Portugal, seguido pelo Governo, defendeu que devia ser possível antecipar reformas com pagamento dos salários integrais, para afastar das empresas os trabalhadores com mais anos de casa e “que passam a vida nos médicos”, devia colocar-se um cartaz pestífero a dizer: não aceitem o engodo, não acreditem neles, querem enganar-vos e, depois de se reformarem, cortam-vos o que vos prometerem no passado para vos empurrar para a reforma. Como fizeram com os trabalhadores do Metro. Eles são gente de má-fé.»
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