Crónica de Diana Andringa, hoje, na Antena 1:
Hoje são emprestadas as palavras desta crónica.
O pé tocou por fim na beira do molhe, e um bafo de lume veio-lhe dele, subiu-lhe os membros, reanimou-o como um calor de ressurreição. Nesse instante sentiu que alguma coisa de duro, mão ou tenaz, o agarrava com violência pelos rins.O que quer que fosse puxou por ele com força, quase o ergueu do chão e fê-lo dar uma reviravolta. Viu diante de si um grande vulto negro, um capote de oleado reluzente de chuva, uma farda com botões de metal e uma chapa cor de prata. O agente da polícia inclinou para ele o rosto vermelho e robusto: – Stowaway, eh? – e sacudiu-o com energia, como se o quisesse despertar do torpor. – Passageiro clandestino? – repetiu, e riu-se. – You speak English? Com aquela mão brutal não se brincava, e ele respondeu: – Eu não espique inglish, eu não espique! O agente largou uma risada de gozo e tornou a sacudi-lo:– No eespeek! No eespeek! e apertou-lhe os ombros com mais força, a tactear-lhe os ossos, talvez a ensaiar esmagar-lhos pelo simples prazer de exercer forças naquela fragilidade. Depois, de repente, obrigou-o a dar meia volta, de cara à terra, apoiou-lhe a mão enorme e espalmada nas costas, e empurrou-o: – Now run! Não precisou de entender, e correu: correu sem saber aonde ia, nem se o guarda lhe ia dar um tiro pelas costas, como a um ladrão das docas que desobedece à ordem de Alto!, ou se realmente o mandava embora, livre, sem o prender nem o forçar a regressar a bordo. Foi quando a voz do polícia lhe atirou à distância, pela rectaguarda:– Hey! Merry Christmas!...O clandestino estacou, compreendendo vagamente, e só nesse instante se lembrou que era Noite de Natal. Então com a garganta apertada, a rir e a chorar, transpôs umas calhas ferroviárias, pulou uma vedação de rede de arame, e deitou a correr em campo aberto, nas trevas.
São excertos de um conto de José Rodrigues Miguéis, inspirado na saga dos emigrantes clandestinos portugueses que buscavam o sonho norte-americano. Hoje, outros clandestinos buscam o sonho europeu e morrem na travessia do mar que nos une e nos separa. Segundo a ONU, mais de três mil e quatrocentos morreram este ano. Recordo-os aqui, em vésperas de Natal, porque cada um deles podia ser um de nós – e a sua morte nos devia ser insuportável.
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