Com um dia de atraso, e retomando, em parte, um
texto que em tempos publiquei, faço questão de recordar que José da Felicidade
Alves morreu no dia 14 de Dezembro de 1998, com 73 anos.
Com uma vida atribuladíssima, foi uma das figuras
centrais da oposição dos católicos à ditadura, sobretudo a partir de meados da
década de 60. Não se estranhe que continue a chamar-lhe «padre Felicidade»:
faço-o unicamente porque foi como ele sempre desejou ser tratado – até ao fim.
Prior da paróquia de Santa Maria de Belém, em
Lisboa, desde 1956, foi sobretudo a partir de 1967 que as suas intervenções
começaram a causar incómodo tanto ao poder político como ao eclesiástico
(embora já em 1965 tivesse sido enviado por Cerejeira para Paris).
No início de 68, ausentou‑se de novo para aquela
cidade (continuando, no entanto, como prior titular de Belém) para prosseguir
estudos de Teologia Ecuménica. De visita a Lisboa por ocasião da Páscoa,
resolveu fazer uma comunicação ao Conselho Paroquial, na presença de oitenta
pessoas, comunicação essa que desencadeou um longo e atribulado processo que
iria culminar no seu afastamento da paróquia, na suspensão das funções
sacerdotais e, já em 1970, na excomunhão (ou seja exclusão da própria
comunidade eclesial). A comunicação de 19 de Abril tinha duas partes: Perspectivas
de transformação nas estruturas da Igreja e Sentido da
responsabilidade pessoal na vida pública do meu país, sendo abordados,
nesta última, problemas que iam da necessidade da
abolição da censura, ao direito à informação e à discussão da guerra colonial.
O cardeal Cerejeira avançou com uma tentativa de
o retirar da paróquia logo em Maio, mas seguiu-se todo um processo, recheado de
peripécias, que terminou com a referida suspensão das funções sacerdotais.
Houve então inúmeras reacções de paroquianos e de
centenas de padres e de leigos. A páginas tantas, não me recordo exactamente
quando, um grande grupo de pessoas, solidário com o padre Felicidade, dirigiu‑se
de Belém para o Patriarcado, onde se acantonou no átrio e numa pequena área do
passeio, protegida por um gradeamento e por isso a salvo da intervenção
policial. Foi pedida uma audiência a Cerejeira que não apareceu mas enviou um
secretário para dispersar os presentes. Ficará na memória de todos «Esta casa é nossa!», um grito
repetidamente lançado nessa tarde, no seu jeito bem peculiar, por Francisco de
Sousa Tavares. O cardeal não nos recebeu, mas estava reunido, a essa mesma
hora, com alguns paroquianos de Belém muito activos contra o padre Felicidade.
Quando esta reunião terminou e os participantes desceram a escada do paço
patriarcal, deu‑se uma cena patética: uma dessas pessoas, salazarista
ferrenho, viu no meio da multidão que se encontrava no átrio a mulher acompanhada
pela filha. Ele gritou mandando‑as para casa, elas choraram abraçadas,
silenciosamente. Inesquecível.
Uma das principais iniciativas do padre
Felicidade depois do afastamento da paróquia de Belém, em Novembro de 1968, foi
a publicação de onze números dos Cadernos GEDOC, em 1969 e 1970, dos quais foi
o grande impulsionador (juntamente com Nuno Teotónio Pereira e Abílio Tavares
Cardoso). Publicação que começou por ser legal, embora à revelia e prontamente
condenada pelo cardeal Cerejeira, passou à clandestinidade quando os seus
principais responsáveis, incluindo o padre Felicidade, foram presos pela PIDE.
Depois do 25 de Abril, Felicidade Alves aderiu ao
PCP, onde se manteve até morrer, embora sem actividade de militância nos
últimos anos. Até neste aspecto a sua vida foi atípica, já que foram poucos os
chamados «católicos progressistas» que escolheram tal percurso.
Mas verdadeiramente decisiva foi a sua grande
influência nos meios católicos, a frontalidade das atitudes e do discurso. Como
muito bem definiu Abílio Tavares Cardoso, um dos seus principais compagons
de route, os textos do padre Felicidade «não traduzem só um novo paradigma
de estar e de lutar na Igreja, mas vão ficar na história como páginas
antológicas para uma literatura de indignação».
Tinha-se casado civilmente em 1970, mas só
em 10 de Junho de 1998, seis meses antes de morrer, trinta anos após o início
de um longo processo dramático com a Igreja e quando, finalmente, foram
resolvidos os problemas a nível do Vaticano, é que o cardeal José Policarpo
celebrou o seu casamento canónico – tal como o padre Felicidade sempre
desejara.
P.S. – Este texto resulta, em parte, de transcrição e adaptação de algumas páginas de um livro que publiquei em 2007: Entre as brumas da memória. Os católicos portugueses contra a ditadura, Âmbar, 248 pág.
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1 comments:
Soube hoje no DN, que foi padre e casou pela Igreja o pai de Mário Soares.
Assim não compreendo que ele se diga tão ateu, graças a Deus.
Talvez tenha passado procuração a Maria de Jesus para rogar por ele para poder entrar daqui a muitos anos na Igreja de Santa Engrácia.
Humor não faz mal.
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