13.1.15

Eles não perceberam a piada



José Vítor Malheiros, no Público de hoje. Excertos:

«Se houver um céu dos cartoonistas e se os do “Charlie Hebdo” estiverem deitados na nuvem a olhar cá para baixo, não podem ter deixado de se interrogar, ao ver as manifestações de domingo, com tantos dos políticos com quem eles gozaram a reclamar-se Charlie: “O que teremos feito mal?”. E não podem ter deixado de se perguntar isso porque Charlie nunca procurou consensos, sempre desconfiou dos consensos e sempre desafiou os consensos. Sempre foi esse o papel de Charlie e é isso que devemos a Charlie: a sua iconoclastia, a sua capacidade para nos desafiar a nós e aos outros, cruzando inúmeras vezes as fronteiras do bom gosto e do bom senso, garantindo sempre que a liberdade não ficaria refém do preconceito ou das conveniências.

Falou-se muito de humor nos últimos dias e defendeu-se muito (e bem) o direito a fazer rir, como parte da liberdade de expressão, mas “Charlie” não pretendia fazer rir. Charlie queria criticar, satirizar, ridicularizar, mostrar a hipocrisia, a ignorância, a boçalidade, a roupa suja dos poderosos dos grandes e dos pequenos poderes, denunciar o moralismo e os bem-pensantes. Denunciar com humor, porque Charlie amava a vida e queria que nos deliciássemos com ela. Charlie era pelo prazer e isso (tanto como as suas posições políticas) foi algo que nunca lhe perdoaram. Charlie fazia humor porque punha tudo em causa incluindo a si próprio e essa era (e é) a sua razão de ser. (...)

Eles não tinham percebido que as caricaturas do Charlie não eram contra o islão mas contra os idiotas e os carrascos misóginos que se reclamam do islão, como outros não tinham percebido que o Charlie não era contra os judeus ou os católicos mas contra os idiotas judeus e católicos que defendem a ignorância e a violência. Eles não perceberam que não era Maomé que Charlie queria ridicularizar, mas eles mesmos, os fanáticos, os cretinos de Kalachnikov sonhando com a erecção eterna e 72 virgens à espera. Nesse sentido, não se enganaram no alvo, mas provaram que o Charlie tinha razão e que eles eram, de facto, apenas cretinos com Kalachnikovs.» 
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