«Molière, no século XVIII, alertou com humor fulminante para um facto: a crescente hegemonia dos algarismos sobre o discurso político. Desde então esse momento, que servia para pôr as pessoas a rir nas peças de teatro, tornou-se uma realidade.
A vida actual perpetua o sonho de Molière e, por isso mesmo, na sua arquitectura em que os números fazem o papel de pessoas, a cultura, o valor do tempo, a ética ou a sensibilidade são valores dispensáveis. É por isso que a discussão central na Europa é hoje sobre a austeridade e a dívida e não sobre os desastrosos efeitos pessoais que a obsessão pelos números tornou irrelevante. (...)
Nada que admire: a memória cultural tornou-se dispensável porque isso faz parte da ideologia hoje reinante onde as ideias se resumem a 140 caracteres de Twitter. A erosão da paciência conjuga-se, em Portugal, com a forma como aqueles que ocupam cargos de relevo no sector público (ou mesmo no privado) convivem com os erros que cometeram, por acção ou por omissão. Entre as desculpas de Pedro Passos Coelho por causa das suas dívidas à Segurança Social à interminável lista de esquecidos do caso BES/GES/PT, que têm passado pelo Parlamento, há de tudo para todos os gostos. Isto para não irmos mais atrás, a outras legislaturas. Isto é a consequência dos números se terem sobreposto às ideias políticas, a essência da democracia.
Quando se percebe que a política de intervenção em países como Portugal, Grécia ou Irlanda foi desenhada e desenvolvida por técnicos sem noção da realidade e sem escrutínio democrático (perante o olhar fascinado de Durão Barroso e dos seus pares), percebe-se onde chegou o sistema. É claro que a hora das decisões aproxima-se: a Alemanha, uma economia exportadora, está prestes a vender mais para fora da União Europeia do que para este espaço. Quando isso acontecer tudo se tornará mais explícito nesta Europa pobre de cultura e de sentido de Estado.»
Fernando Sobral
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