10.3.15

Tolerância zero, tolerância infinita



Excertos do artigo de José Vítor Malheiros, no Público de hoje:

«A tolerância zero foi o critério que o Governo PSD-PP anunciou como cerne da sua política. Só que se tratou de tolerância zero apenas para com os cidadãos comuns, contribuintes habituados a viver acima das suas possibilidades e cujos luxos tinham condenado o país a uma dívida gigantesca. Tolerância zero para com os desempregados e pensionistas, habituados a subsídios e pensões de luxo que era preciso cortar. Tolerância zero para com os pobres, que viviam à tripa-forra de RSI e de abonos de família que foram reduzidos ou cortados. Tolerância zero para com os recibos verdes que ganhavam fortunas que por vezes chegavam mesmo a exceder o salário mínimo. Tolerância zero para com os utentes do SNS que tiveram de passar a pagar mais por uma urgência hospitalar do que por uma consulta privada. E tolerância zero para com os cidadãos gregos, culpados dos mesmos pecados e do pecado de terem votado à esquerda. Mas esta tolerância zero viveu e vive paredes-meias com a tolerância infinita, com a libertinagem permitida a banqueiros e gestores que levaram as suas empresas à falência fazendo desaparecer não se sabe bem em que bolsos milhares de milhões de euros, aos autores de fugas ao fisco gigantescas, às PPP e swaps que garantiram enormes lucros sem risco à custa dos contribuintes, às Tecnoformas que ganharam dinheiro sem se saber porquê e que pagaram a consultores sem se saber em troca de quê. O primeiro problema da tolerância zero é esse: o da falta de equidade. É que nunca a tolerância zero se estende a todos.

O que mais choca nas dívidas de Pedro Passos Coelho à Segurança Social é esta desigualdade: a tolerância e a compreensão que pede para si, um político experiente e bem pago, e a tolerância e a compreensão que não teve para centenas de milhares de famílias pobres. (...)

Hoje sabemos que o primeiro-ministro recebeu durante anos uma remuneração que não é claro se se devia a trabalho realizado ou se se destinava apenas a “abrir portas”. Que não pagou ao Estado durante cinco anos uma contribuição que devia ter pago. Que diz que não pagou porque não sabia que devia pagar. Ou porque não tinha dinheiro. Que quando soube que devia, adiou o pagamento. Que só pagou parte da dívida quando soube que um jornal ia publicar a história. Que o devemos desculpar porque não é perfeito.

A tolerância é apenas outro nome do bom senso e da humanidade. Não queremos ser condenados pelo primeiro deslize, pela mínima falta. Mas ao recusar para os outros qualquer magnanimidade, o primeiro-ministro perdeu o direito a beneficiar de qualquer atenuante.» 
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