3.10.15

Reflexão ou puro paternalismo de Estado?



Sempre considerei uma pura aberração esta interrupção de quase dois dias num processo em que os cidadãos deviam ser considerados adultos e não simples marionetas nas mãos de um legislador zeloso, agora «envernizado» com modernices de censura nas redes sociais. Mas dou a palavra a Nuno Brederode Santos, num texto magnífico publicado no Diário de Notícias de 15.07.2007

«A reflexão imposta por lei é o produto directo e linear de uma transição democrática. Ao cabo de quase meio século de cidadania mutilada, o seu pleno exercício, pelos cidadãos em tirocínio que nós éramos, parecia aconselhar medidas dessas. Mas, trinta e tal anos e dezenas de votações depois, a sua subsistência é a manifestação de um puro paternalismo de Estado. (...)

Ora, porque assim não é, o dia de reflexão torna-se estranho, enevoado e penoso de viver. Há uma bruma anómala à nossa volta e parece que nos movemos numa second life onde cada olhar é um espanto e cada passo uma aventura. De manhã, no café, primam pela ausência os amigos e vizinhos mais político-dependentes. E os demais avatares que pontuam a esplanada são seres desconhecidos, translúcidos e dotados de sorrisos lentos e mãos que mexem como num espaço sem gravidade. É assim nas Amoreiras velhas, uma amável aldeia urbana, logo pela manhã. Mas é assim também em Campo de Ourique, cidade na cidade, bairro onde nasci e ao qual muito me liga ainda. (...)

É nesse ambiente equívoco, feito de trocas de olhares entre gente vagamente conhecida, que se gera uma forma bizarra de cerimónia cívica, por força da qual ninguém diz nada que remotamente evoque as eleições iminentes. Como se a opinião de um pudesse lesar, ou contagiar, o outro. Ou o juízo deste, que na véspera teria sido de seu inteiro direito, fosse hoje um abuso ou uma agressão. A meio do dia, já quase preferimos não conhecer ninguém. É certo que, quando eu nasci, também não conhecia cá ninguém. Mas, demasiadas décadas depois, um exercício de quase regresso ao útero materno violenta uma vida inteira de direitos adquiridos. É maçador, embaraçoso - enfim, em sentido próprio, um atraso de vida.

Ignoro que remédio lhe dão os mais destemidos. Por mim, recolho às vantagens práticas de uma resposta tímida e timorata à situação: recolho a casa. Onde não terei serenidade psicológica para ler, nem vertigem activista para escrever. Olharei bovinamente para a televisão, na esperança (sempre) vã de ver passar, por entre as pálpebras a meia haste, o relance de um candidato, a sombra de um eleitor ou, ao menos, o olhar cúmplice de um "pivot" de telejornal a transmitir-me qualquer coisa que se assemelhe, já não a solidariedade, mas pelo menos a um pouco de compreensão. Em vez disso, porém, serei bombardeado com desastres de viação, fogos frustrados, crimes passionais e patetices ditas "sociais" de "celebridades" que o não são. Com sorte, terei talvez o comendador Berardo a explicar mais uma iniciativa altruísta. Ou até um dirigente da oposição a dizer que exige ao poder o que não pode dar e um governante a dar-me aquilo que já é meu. Depois, terei minuciosas e por vezes ininteligíveis notícias sobre acontecimentos políticos, mas da Europa e do Mundo, onde a maldição não chega. E, logo que se tenha dado despacho a quase vinte minutos de electrodomésticos, automóveis, detergentes, telemóveis e supermercados, servir-me-ão os eventos do mundo admirável da época das transferências no futebol nacional.

Está escrito, vai ser assim. E, pelos vistos, até que a morte nos separe.» 
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